terça-feira, 12 de abril de 2011

A Trupe. Capítulo final.


  
 Às vezes eu comparo um grupo de teatro a uma banda de música pop. Temos nossas brigas, nossos rituais, nosso estilo. Só não temos o mesmo número de fãs. Já tentei fazer drama. Mas o que move minha pele e alma é a comédia.
 Sempre foi e sempre me esqueço.
 Depois de tomar nossa bebida secreta subimos no palco.
 “Vamos passar vários corridos até não podermos mais.” Duda nos orientou.
 Nas primeiras três passagens eu ainda estava mecânico, cérebro, razão. Já na quarta vi os primeiros franceses na platéia, minutos depois a casa estava cheia. Delírio absoluto. Nesta alucinação lembrei do teatro Romano porque é dela que vem a minha estrutura. Plauto.
 Napoleão estava excelente, Mari, um furacão em cena e nós outros nos agüentávamos. Foram dez horas de ensaio e delírios. Trabalhamos com a exaustão. Quem disse que teatro é fácil?
 No dia seguinte, deixamos Tiradentes em direção a São Paulo. Éramos notícia, uma notinha no jornal contava sobre a minha briga com Rodolfo. Paramos em Carrancas e passamos o dia na cachoeira. Acho que é perda de tempo contar o quanto o corpo de Mari é lindo num biquíni. Sorte de quem fosse seu amante. Sua amante provavelmente.
 De volta a São Paulo. Vejo uma vizinha na Rua. Uma menina do clube que há anos eu conheço, mas que agora estava uma mulher de 23 anos como depois eu vim saber. Eu voltava da padaria e ela passava carregando um skate.   
 “E o teatro? Como anda?” Ela arriscou.
 Partimos para um café e depois para a minha casa. Foi tudo rápido. Eu estava mesmo precisando de outra mulher. E uma bem diferente tanto de Bia como de Mari.
  Diferente como? Veterinária, menina... E novidade na minha vida amorosa. Eu já tinha colocado os olhos nela há muito tempo, e agora ela estava na minha cama. Uma molequinha.
 “Vamos ao cinema?” E fomos.
 Ligia era o que chamamos hoje em dia de underground. Amava a baixa Augusta. Acabamos na Loka.
 Dia seguinte ressaca e ensaio no Teatro do Banco Brasiliense. O lugar era ainda maior do eu imaginava e com mais funcionário também. Eu tinha um camarim só para mim. Pessoas a minha disposição e 1.200 lugares na platéia e não 800.
 A semana passou voando, ensaios e entrevistas na televisão e rádios. O cenário da Ale realmente havia ficado esplendido.
 Quarenta e oito horas antes da estréia. Bia e eu mal nos falávamos. Resolvi atender Lídia a skatista e fui ao encontro dela de madrugada, depois do ensaio.
 Acho que eu estava neste dia apaixonado. Lá pelas cinco da madrugada Duda me liga.
 “O que foi?” Pergunto temeroso.
 “Nada.” Ele diz. Pela primeira vez estava tudo sob controle. A produção eficiente, os ensaios em dia e o espetáculo pronto.
 Nossa primeira estréia fora num teatro para cinqüenta pessoas. No dia colocamos 60, muitos no chão e fomos comemorar no bar Empanadas na Vila Madalena. Só nós, e mais um ou outro agregado, namorado ou namorada de alguém. Uma mesa com cerveja de garrafa grande, foi isso.
 Cheguei ao Teatro do Banco Brasiliense quatro horas antes. Quase todos já estavam lá. Mil e duzentos lugares! Que medo.
 O terceiro sinal foi dado e as cortinas se abriram. Fiquei aliviado quando vieram as primeiras risadas. Nós loucos não havíamos feito ensaio aberto. Duda acha que dá na mesma chamar de estréia ou ensaio aberto.
 Todos estavam no seu melhor desempenho da carreira. E ao final eu vi o teatro todo nos aplaudir.
 Éramos a Trupe do Sol. Um grupo de comédia, de teatro. Ao final Bia pediu silencio e falou.
 “Hoje eu quero agradecer a seis pessoas muito especiais para mim.”
 No que nos olhamos, demos pela falta de Mari.
 Dario veio dos bastidores e pedindo para os seguranças abrirem caminho. Ele e outros técnicos carregavam Mari pelo corredor do teatro.
 Neste dia não houve festa. Estava programada uma enorme festa. Cancelemos e seguimos para o hospital.
 Mariana morreu naquela madrugada. Agüentou o mais que pode, e escondido da gente, já havia treinado uma substituta. Não queria nos prejudicar.
 Fizemos o segundo dia de espetáculo com a nova atriz em seu lugar. Veio o enterro, a missa de sétimo dia e os três meses de temporadas.
 Eu continuei vendo Ligia, a garota de 23. Rodolfo e Bia ao final da temporada voltaram para o Rio.
 Duas semanas depois saiu o resultado do prêmio Shell de um ano antes. O ano de 2009. Mari havia ganhado o prêmio.
 Comecei a receber vários pedidos de textos meus com a condição de que Bia estivesse no elenco. Eu fui ao Rio ver o nascimento do meu filho, claro. Mas depois voltei para São Paulo.
 Um grupo de jovens atores me convidou para dirigi-los. Ao mesmo tempo em que Duda me dirigiu com Napoleão e outros numa comédia de Georges Feydeau.
 A vida foi passando. Eu sempre me lembrava do dia que Bia me pegara no Santos Dumont e estava tão linda. Por que eu não disse isso pra ela?
 A Ligia acabou me largando, também eu estava cada vez mais depressivo.
 Minha campainha toca. Abro a porta e é Ale a cenógrafa. Ela tinha uma carta para mim. Explicou-me que Mari lhe pedira que me entregasse:
 “Leo mentimos pra você.”
 “Como assim?”
 “Eu e Mari já namorávamos há dois anos. Rodolfo nunca teve nada com meu irmão, simplesmente porque eu não tenho irmão. Inclusive Rodolfo é Heterossexual.”
 “Do que é que você está falando?”
 “Ela até me pediu permissão pra transar com você para você perceber... Que não havia nada a ser feito. Ela fora apaixonada por Beatriz sim. Disse-me que no início tinha grandes ambições e só aceitou entrar no grupo porque fora chamada por Beatriz. Depois mais velha ela percebeu que você talvez tivesse sido o mais talentoso do grupo e não ela. Enfim... Mari queria fazer um texto seu sim, mas também queria que você e Bia se entendessem. Ela falava às vezes com Rodolfo e Frederica, logo sabia que Bia e Rodolfo não estavam mais juntos. Todos nós fizemos um pacto para tentar unir vocês de novo. Seu filho é um esforço quase que de toda a Trupe. O tonto do Matheus quase colocou tudo a perder. Esta carta aqui prova isso. Ela disse que se vocês continuassem juntos eu não deveria dar-lhe a carta. Mas como vocês não estão. Tome”.
 A carta de Mari dizia:
 “Leo, a fé da Trupe é o seu amor por Bia.”
 Depois páginas e páginas relembrando nossa trajetória e tentando me convencer do meu amor por Bia.
 Abracei Ale, chorei dois dias e a vida voltou ao normal. Recebera um outro convite para voltar a fazer palhaço, na verdade um show de Clown.
 Um dia ligo para um amigo ator: “Vamos beber uma cerveja?”
 “Leo, eu estou indo numa festa, quer ir?”
 Fomos. Era na casa de uma conhecida dramaturga e seu marido diretor. Umas duzentas pessoas. No alto da Lapa. No jardim rindo alto e de vestido verde vi uma figura linda, com pessoas em volta. Quando ela virou o rosto eu reconheci a mãe do meu filho.
 Ela veio falar comigo:
 “Você engordou.”
 “Você está linda.”
 “Onde está a menina veterinária?”
 “Você sabia dela?”
 Bia deu de ombros. “Claro que sabia.”
 “Não estamos nos vendo mais. E você? Como está o Francisco?”
 “Parou de mamar finalmente. Não se preocupe ele está com uma babá e a minha mãe.”
 “E ele está bem? Digo... Eu morro de saudades. Posso velo amanhã”.
 “Leo agora você vai poder velo quando quiser. Eu mudei para São Paulo!”
 “E nem me falou?"
 " Estou dizendo agora.”
 Continuamos ali, bebendo cerveja, falando de teatro. De cinema, de comida e até política. Entre as árvores.
 “Leo, se eu nunca te disse isso, lá vai... Você é o melhor amigo que eu tive.”
 “Tive ou tem?”
 “Fazemos assim, amanhã vá à casa da minha mãe nos ver. Almoçar, combinado?”
 “Combinado.”
 Já ia indo embora e ela me parou:
 “Aquela nossa cenógrafa a Ale...”
 Eu sorri. “Que é que tem?”
 “Ela também te deu alguma carta por estes dias?”
 Ao invés de responder, eu me aproximei de Bia, olhei nos olhos dela. Nossa como ela é linda! E nos beijamos.
 Fecham-se as cortinas.