O lado mais escuro.
A gente imagina um americano. Como ele é? Uma
americana. Uma loira?
Sim uma loira quando a gente quer imaginar
uns Estados Unidos belo.
Por
quê? Uma loira é mais bela que uma latina? Ou ainda uma loira não pode ser uma
latina?
Quantas perguntas. Agora imagine um
brasileiro. Como ele é? Provavelmente você imaginou alguém cujos ancestrais não
nasceram neste continente americano.
E um
mexicano? Um boliviano ou um peruano? Seriam um asteca, um índio, um inca ou um
maia? Talvez ainda um ibérico? Um mestiço?
No
Brasil a cultura se misturou. Mesmo quando o sangue não se misturou.
O que
é o Harlem? Um bairro dentro de Nova Yorque só com negros. E estes negros são
menos americanos do que os brancos?
O
Harlem hoje, 2013, é um bairro MUITO rico. Tão rico quanto os melhores bairros
de São Paulo. (Se o leitor quiser saber de onde provem o dinheiro pesquise na
internet. Mas creio que o lugar recebe uma ajuda estatal. Ou ainda
governamental como dizem por aqui.) Mas não é disso que se trata este texto. O
comércio é superior à média de São Paulo, assim como a vida cultural. As
igrejas são bem frequentadas. Quatrocentas delas. Digo, praticamente lotadas.
Depois
da missa, eu e a minha esposa Livia, resolvemos tomar um Brunch de domingo.
Mistura de almoço e café da manhã. Da rua não podíamos ver direito o interior
do lugar, um dinner, como chamam por aqui, uma espécie de lanchonete, que serve
de manhã até de noite e não tem cozinha bem definida. Aliás, concertando, tem
cozinha bem definida sim. São como nossas padarias, ou botecos, enfim.
O
lugar era grande e estava praticamente tomado. Só havia uma mesa, próxima a
saída. Outra mesa do lado era ocupada com turistas europeus brancos (todo
europeu é branco?), que também vão atrás dos cultos de domingo nas igrejas
batistas, para admirar os negros cantarem no coro.
Uns
poucos funcionários hispânicos (3) e muitos, muitos negros. Nenhum mulato, tal
qual na igreja, tal qual na rua.
Eu
pelo menos, com minha cabeça brasileira, esperava encontrar algo parecido, ou
pelo menos similar a uma favela brasileira. Pobreza, criminalidade, alegria,
pagode, policia violenta, tráfico, abandono do poder público, prostituição
infantil...
O
Harlem não tem absolutamente nenhuma destas características. O Harlem
inacreditavelmente parece muito mais Tarantino na estética do que Spike Lee. Na
estética e não no conteúdo. Nem sinal de Woody Allen.
Definitivamente
Scott Fritz Gerald é tão estrangeiro para eles quanto para mim. E Eddie Murphy
passaria completamente despercebido aqui.
A
gente não sabe se ri, se fica com medo, se relaxa, mas o fato é que o lugar só
tem negros.
De
tanto ver galerias e museus por aqui, no começo até parece uma instalação
moderna. Sabe aquelas que se utilizam da repetição? Um lugar só com carecas, só
com pessoas baixas, só com pessoas gordas, pessoas só de chapéus, sei lá.
Aí
percebo que os “turistas” são uns esquerdistas americanos brancos, ou talvez
gente da Columbia University, fingem normalidade, mas não conseguem ficar muito
tempo no lugar. Pedem a conta e saem. Agora somos só nós dois (eu e a Livia) e
eles.
Café
americano, panquecas com melado, ovos mexidos, torradas, tudo absolutamente
americano, mas as pessoas eram só negras.
Nesta
hora entendo aquela frase, tanto usada para os negros no ocidente:
“Sua
cor já é um problema”.
Ao entrarmos
pela porta a Lívia e eu, já criamos um desequilíbrio. Já criamos um problema,
sem ao menos estar atrás de um.
“O que
vocês estão fazendo aqui? Embora seja domingo, aqui não é turístico. É só uma lanchonete
como outra qualquer. Acontece que é uma lanchonete no Harlem”.
Ninguém nos abordou. Nem nunca vou saber o que
eles pensaram. E se realmente ligaram para nós.
Saímos
de lá, andamos pelas ruas, lojas e museus. Lorca disse uma vez que os negros
americanos são os maiores atores do mundo. Claro que isto é uma bobagem. Ou
ainda um exagero. A cor não define um talento. Mas uma cultura pode ser sim mais
teatral. Mais histriônica e visceral.
Em
pouco tempo você percebe que há diversidade no Harlem. Seus olhos começam a
identificar padrões que se repetem.
Há o
negro gangster, o negro intelectual, o negro engajado, o negro artista, o negro
capitalista, o negro racista, o negro com ginga, as negras exibicionistas, as
senhoras negras simpatiquérrimas, os negos sábios, os malandros, os
direitistas, os negros velhos que parecem tão jovens.... E são tão americanos.
E tudo tão musical.
O
Harlem é uma nação dentro de uma nação. Lá vimos à bandeira americana onde o
branco era substituído pelo preto. É sério, as listras e estrelas eram pretas.
A Vai
Vai em São Paulo é o encontro da África com a Itália. O Bixiga é a terra do
Adoniran Barbosa.
O
Harlem é o Harlem. Não é África, não é Inglaterra, não é o Mississipi.
O
Harlem não tem nada de Brasil.
Com
certeza deve haver muita maldade por lá. Exatamente como em todo lugar, não
sejamos ingênuos.
Aos
domingos o número de turistas europeus é grande no bairro. Não vi asiáticos nem
brasileiros.
Uma
pena. Talvez os brasileiros achem que os negros americanos sejam mais parecidos
com os brasileiros do que os brancos americanos. Por isso não vão conhecer. Com
exceções, claro.
Em
minha opinião, leitor brasileiro, o Harlem é uma cultura a parte. Aí que gafe,
digo, uma cultura original, sem matriz. E é uma grande e belíssima cultura.
Espero
que o leitor entenda que este texto é uma impressão minha do Harlem, e não um
tratado sociológico. Se quiser informações precisas, dê um Google.
Se
vier para Nova Yorque, sim com Y mesmo. Pegue o metrô e venha para o Harlem.
O mais
incrível é que ninguém vai te pedir o passaporte na saída do metrô.
Mas vá
preparado, os habitantes do Harlem vão te gozar, vão-te amedrontar, vão te
emocionar.
Como o
pastor de lá disse, eles são os cristãos contemporâneos.
São
talvez, proporcionalmente, umas das comunidades que mais inovam no planeta. A
missa deles é centenas de vezes, mais interessante do que a católica.
Mas
eles não sabem disso. Acho que o perigo, é que quando descobrirem o quanto são
interessantes, eles deixem de ser.
Mas
até lá, vá visitar o Harlem. Imperdível.