segunda-feira, 19 de agosto de 2013

C`eravamo tanto amati.

 Eram três. Inseparáveis. Carlão, Dedé e Mafalda. Conheceram-se na faculdade de sociologia. Durante mais de vinte anos foram marxistas convictos.
 Mafalda era agora professor de sociologia numa renomada universidade. Tipo USP. Estava fazendo pós-doutorado. Casara-se com Denise, uma quarentona, farmacêutica, que tinha um filho do primeiro ou segundo casamento. Marcelinho, de dez anos. 
 Dedé era músico, casado com Fátima, praticamente quarentona. Fátima era esteticista. Tanto Fátima quanto Denise não eram politizadas. Tinham aquele sonho de classe média. Apartamento próprio, carro zero, viagem para Miami e churrascaria rodízio nos finais de semana.
 Dedé ainda não tinha filho. Fátima queria muito um, mas ele achava que não valia a pena ter um filho antes da revolução.
 Sim leitor, você ouviu bem. Revolução. Os três amigos tinham também o sonho de conhecer a Coreia do Norte e libertá-la da tirania capitalista da Coreia do Sul. Ou ainda libertar a Coréia do Sul dos tiranos capitalistas. Estava tudo um tanto confuso. Mas sonhavam.
 Eram marxistas convictos. Por isso tomaram um susto naquela sexta-feira fim de tarde, quando tomavam uma cerveja num boteco de Perdizes.
 “Estou pensando em mudar de religião.”
 Carlão criou coragem, achava que depois do FHC, do Lula e Dilma, nada mais fazia sentido. Acreditou que os amigos entenderiam e até fariam o mesmo. É como se ele estivesse saindo do armário. E os amigos sairiam em seguida.
 “E para que religião você vai mudar?” O desafiou Mafalda. Aquilo não poderia ser sério. Era mais uma piada do Carlão. Largar o Marxismo? Nunca.  
 “Estou pensando em seguir o Cristianismo.” Os amigos caíram na risada e Mafalda pediu mais uma cerveja e uma porção de amendoim.  
 “Li um livro e me dei conta, que é uma tradição que conheço desde criança.”
 “Cristianismo?” Gritou Dedé.
 “Sim. Cristianismo.”
 Os outros dois pararam de rir e perceberam que a coisa era séria mesmo.
 “Eu conheci esta garota, Ana Paula. Ela é budista. Me levou para ver os templos, fazer meditação, parei de comer carne e tal, mas me dei conta de que, se eu não for mais marxista, eu vou ser é católico mesmo.”
 Mafalda o questionou se ele não acreditava mais no Marxismo. Carlão, disse que nada mais fazia sentido.
 “E depois... Eu gostei deste novo Papa. Ele me tocou o coração.”
 “O Papa? Eu nem sei que é o Papa!” Exclamou Dedé.
 Aquilo era demais. Carlão, se tornar menos radical, tudo bem. Carlão começar acreditar no livre mercado, na livre iniciativa, propriedade privada, seria triste, tudo bem também. Mesmo porque hoje que diferença na prática existia para eles? Fosse aquela cerveja de multinacional, ou uma cachaça estatal, eram uns perdedores mesmo.
 Casados com mulheres burras e feias. Viviam duros e nem tinham mais um discurso que fizesse sentido. Eles nem sabiam qual era direito a capital da Coréia do Norte, algo como Ping Pong, sei lá.
 Se Carlão se transformasse em Budista, e estivesse com uma menina de vinte anos, curtindo uma praia, natureza vá lá, eles entenderiam. Mas a igreja católica? Aquilo era demais. Deus nem existe.
 E Carlão nem fazia o estilo Hippie. Era o oposto de Hippie, andava de carro. Fazia a barba, era o único que fazia a barba na escola de sociologia. Louco!
 “Mas Antonio Carlos nós fizemos faculdade de sociologia. Como você pode acreditar em Deus?” Questionou Mafalda.
 “Sei disso. Me arrependo. Se eu tivesse dezoito anos hoje, teria escolhido o seminário, mas naquela época, anos oitenta... Eu nunca me identifiquei com o João Paulo II.”
 “Você não pode mudar sua fé, sua história por conta de um Papa!” Gritava Mafalda. Mas Carlão não se importou. Deu de ombros. E eles mudaram o assunto para futebol.  
 Na semana seguinte, Carlão parecia o mesmo. Mas foi Dedé quem disse que estava se separando da Fátima. Depois de chorar muito ele confessou. Fátima estava tendo um caso.
 “E você conheceu o cara?” Perguntou Carlão.
 “Cara?” Dedé disfarçou, mas logo em seguida disse: “É a professora de inglês dela”.
 Os amigos não riram.
 “E olha que é feia pra danado. Eu mesmo não a pegaria.” E desatou a chorar. Os amigos seguraram sua mão e o consolaram. Também Fátima era um canhão. Canhão e chata, agora Dedé arranjaria uma gatinha linda de vinte anos. Eles diziam. Uma amiga budista de Ana Paula quem sabe.
 “Quem sabe.” Ele suspirou com uma esperança.
 “Claro! Que mulher não gosta de um músico?” Perguntava Carlão.
 Pediram mais duas cervejas e começaram a falar de futebol.
 Na semana seguinte foi à vez de Mafalda soltar a bomba. Dedé estava deprimido, Carlão pensativo, distante. Mafalda muito ansioso quebrou o silencio:
 “Matei um homem”.
 Carlão olhou para Dedé. Ambos deram de ombros. E pediram mais duas cervejas. Minutos depois, Dedé quis saber.
 “Quando foi isso Mafalda? Esta sua história.”
 Mafalda, pensou, pensou, pensou e por fim disse curto e grosso. “Há já faz muitos anos.” Como alguém que não quisesse dar continuidade ao assunto.
 E começaram a falar de futebol. Mafalda ficou aliviado de não terem perguntado detalhes. No fundo os amigos sabiam que era mentira. Mas estavam satisfeitos pelo equilíbrio ter retornado a mesa.
 Na semana seguinte, puderam voltar a falar da Coréia do Norte. Sobre o antigo plano de adequar a nova realidade deles.
 Uma das mudanças foi decidir que a Coréia do Norte seria evangelizada. E receberia a visita do Papa. Riam. Tudo fazia sentido de novo.

 Nós que nos amávamos tanto, é o título de um filme de Ettore Scola.





quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Cada um na sua cama.

 Era uma festa de umas duzentas pessoas. Uma casa cinematográfica. Só os Vips haviam sido convidados. Ela sentiu alguma coisa estranha na mordida. Será que a capinha do dente tinha caído? Colocou o salgado numa mesa, passou a língua pelo dente e correu para o banheiro.
 Ele começou a sentir calor. Estava muito quente na festa. Tentou tirar o blazer. Não conseguiu. Ficou com a impressão de que a roupa estava presa e não saía.
 Ela se olhava no espelho e pensava: “Fodeu”. Na verdade era só uma parte pequena do dente, o finalzinho do dente da frente. Aquilo, o buraquinho, ficava até sensual. Mas para ela era o fim. Melhor ir para casa.
 Ele estava agora com mais calor e suando. Ficou preocupado com as manchas debaixo do braço. Foi para o terraço enquanto a esperava de volta do banheiro.  Aquele redondo de suor que chamam de pizza. Melhor ir para casa. Mesmo porque ele não tivera tempo de tomar banho. Mas ele tinha que se despedir dela. “Ah! Lá está ela”.
 Ela voltara do banheiro, séria. Muito séria. Ele falava sem gesticular os braços. O que o deixava com uma impressão de pessoa dura, sem ginga. Desajeitada. Ela dançava com cara de brava. E ele ficava parado para não mexer os braços.
 Ela permanecia com uma expressão antipática, de boca fechada. O que o deixou mais desconcertado ainda. “Será que ela viu as minhas pizzas debaixo do braço?”
 Ela queria rir e não podia. Sentia-se uma idiota com a cara de neutralidade que estava fazendo. Mas não queria arriscar dele ver seu dente faltando, ou melhor, um pedaço dele que estava lá minutos antes.
 Ele não mexia os braços. Não arriscava nem beber mais, para não ter de levantar o copo e mostrar o suor. “Mas também para quer vir com roupas tão justas?” Ele pensava. “Agora é tarde”.
 Na hora de se despedirem, ela deu um sorriso. “Será que ele viu o dente faltando?”
 Ele ficou tão contente de ter conseguido chegar em casa. Ninguém vira seu suor.
 Ela ria tanto de ter escapado sem revelar seu dente quebrado.
 Ele tomou um banho. Ela viu um pouco de televisão.

 E os dois dormiram felizes naquele sábado à noite. Cada um na sua casa. Cada um no sua cama. Um pensando no outro. Mas com a imagem de ambos, preservada. Que é o que mais vale nesta vida afinal de contas. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Deus existe?

 Deus existe?

Outro dia eu descobri que está acontecendo uma revolução no jornalismo. Sim. Agora graças à nova tecnologia, qualquer um pode ser um repórter. Logo eu que sou um bombeiro, agora posso ser um jornalista também.
 Não que eu vá deixar de ser Bombeiro. Nem ator de novelas. Eu estou fazendo a novela das três da manhã.
 Escolhi fazer uma matéria sobre Deus. A vida dele, e todas as polemicas que envolvem seu nome.
 Tipo sua vida financeira, amores e a paternidade de Jesus. Este inclusive que eu já tive o prazer de conhecer. Lá num clube de campo que às vezes minha mãe me leva. Tem lá uma comida sofrível, mas a piscina é boa. Fico meses sem sair de lá.
 Jesus é um dos habitues. Quando me vê por lá grita: “Ator! Oh ator!”. O que me deixa até um pouco irritado porque não gosto de fãs histéricos.
 Mas seria muito difícil entrevistar Jesus sobre seu pai. A cada avião que passa, ele grita: “Isso aí, este barulho, não é avião não! É meu pai! Papai!” Para não contrariá-lo eu concordo. Mas como passa muito avião por este clube de campo, e ele gosta mais de falar de um acidente de carro que ele teve, do que de Deus, nossas conversas são sempre interrompidas. Mesmo porque o tal acidente aconteceu nos anos 70, quando Jesus disse que ganhou na loteria. Acho que naquela época a loteria era mais fácil.
 Bom voltando. Lembrei-me de um vizinho. Um cara que eu sempre visito umas duas, três vezes por semana. Ele conhece, sabe tudo sobre remédios. Não os remédios que o Jesus usava nos anos setenta. Outros. Uns para me deixar com, quer dizer, digo sem os delírios.
 Eu tomo todos. Não porque eu tenha delírios, mas para não desapontar este meu vizinho. Aliás, um vizinho de cidade, não de prédio. Meu vizinho me vê na novela das 3 da manhã, disse que estou melhor que o Marlon Brando. Grande coisa.   
 Cheguei ontem na casa dele. Sentei naquele sofá dele. Foi quando eu vi um quadro com uma montanha coberta de neve. Ele me disse que era o Canadá.
 Foi aí que eu adorei esta coisa da nova mídia, pós-industrial. Eu posso mudar de reportagem a hora que eu quiser. E convenhamos, gnomos no Canadá, é bem mais interessante do que Deus, Jesus... No Canadá existe até ursos. Sim, ursos e neve. E alces.
 O que eu não entendo é porque gnomos não acreditam em E.T.s? Meu vizinho disse que ele não era a pessoa mais indicada para falar sobre Deus. Eu deveria procurar um padre.
 O que me faz pensar. Toda vez que eu quero falar sobre Deus, as pessoas sempre ficam constrangidas, esquisitas e desviam a conversa. Será? Será...
 Será que eu sou Deus? Agora tudo faz sentido. Este mundo aí fora não existe. Tudo só acontece quando eu vou aos lugares e vejo as pessoas. Fora isso, as pessoas ficam descansando. Sim. Agora em Londres, por exemplo, está tudo vazio porque eu estou aqui em São Paulo.
 Mas e no Canadá? E no Canadá?
 “Jesus você acha que está acontecendo alguma coisa neste exato momento no Canadá?”
 “Não é avião não! É meu pai!” Ele grita. Depois de passar o avião ele vira-se para mim:
 “Aqui é o Canadá.”
 Afinal concluo que assim como o Canadá, Deus é tão grande, que não precisa existir.
 Eles existem nos quadros do meu psiquiatra, digo meu vizinho. Na cabeça dos padres da igreja. Nos atlas escolares...
 E nos milagres. E os milagres acontecem todos os dias. Por isso eu tenho fé. Tenho fé que um dia eu vou me curar. E vou, numa dessas máquinas que voam que o Jesus chama de pai, conhecer o Canadá.
 Vá com Deus. Sempre. Porque acreditar em Deus, não tem nada a ver com saúde mental. Uma coisa, uma coisa, outra coisa, outra coisa. Eu não preciso abandonar minha fé para ser saudável.

 Pronto, vou publicar. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A sereia de Palermo.

A sereia de Palermo.

Era um dia de céu completamente azul. Uma primavera, nem quente nem fria. Ele comia numa peixaria que era restaurante japonês no almoço. Balcões coletivos eram usados como mesa e os clientes se sentavam em banquinhos.
 Pelo enorme vidro do lugar ele avistava o trampolim do outro lado da rua. Foi quando ele a viu pela primeira vez. A sereia de Palermo usava um maiô verde e era uma saltadora. Todas as outras meninas vestiam maiôs amarelos. Ele sentiu que seu destino estava ligado ao dela.
 “E o resto?” Marcela me perguntou. Assim que leu este inicio de conto.
 “Só tenho isso por enquanto.” Eu disse.  “Adoro esta imagem para começar o filme.”
 E era verdade. Marcela deu de ombros. Garotas e piscinas, o cinema estava cheio de garotas, praias, piscinas, lagos... E mistérios.
 Sai da casa de Marcela, uma amiga escritora, romancista, e fui para um encontro com um investigador.
 Era uma delegacia na zona Norte de Buenos Aires. Afonso, o policial era primo de um amigo. Eu tinha mencionado num bar que frequento, sempre com os mesmos amigos de faculdade, minha intenção de conhecer alguém da policia. Uma forma de pesquisa deste universo, no qual eu tinha interesse para escrever uma história policial. Henrique ligou na mesma hora para o primo e marcou o encontro entre nós.
 Afonso foi muito simpático. Era bem mais velho do eu imaginava que ele seria. Estava investigando dois crimes. Num primeiro um homem de 40 anos morrera ajoelhado ao lado de uma cama. Me mostrou a foto.
 “A teoria é que ele misturou remédios com bebidas.” Me disse o investigador Afonso.
 O outro caso era um senhor com Alzheimer, que tinha caído de uma escada no quintal. Seu filho tivera de sair e largara o senhor sozinho em casa. Que subira numa escadinha no quintal cairá e batera a cabeça. Fora encontrado morto pelo próprio filho.
 Tudo deveria ser investigado. Ambos os casos poderiam ter sido assassinatos. Ou não. Aquela dúvida me fez sair de lá eufórico. Talvez os dois casos, as duas vítimas, tenham sido mortas pelo mesmo assassino.
 Talvez aparecesse uma terceira vítima, que ainda não fora encontrada. Ou ainda um quarto assassinato, quem sabe. Quarto? Eram tantas opções que eu nem sabia por onde começar. Eu teria de ler os relatórios, ir aos locais dos crimes. Entrevistar conhecidos das vítimas, enfim arrumar um motivo, tudo o que chamamos investigar.  
 No dia seguinte. Ele foi até o clube militar. Chamou o técnico dos saltos ornamentais e pediu para falar com a menina de maiô verde. Ela vestiu um roupão e sentaram na lanchonete do clube.
 Ele, o detive Afonso mostrou as fotos das vítimas para ela, e perguntou se ela os conhecia.
 Ela sabia sim quem eles eram. Mas não os conhecia. Eram dois dos três jurados do seu ultimo campeonato, no qual ela ficara em segundo lugar. A terceira jurada estava desaparecida.
 Por fim Afonso perguntou:
 “Por que você usa maiô verde, se todas as outras meninas usam maiôs amarelos?”
 “Para ser notada”. Respondeu a sereia.
 Uma semana depois, reencontrei a turma. Henrique não estava.
 Cadê o Henrique? eu perguntei.
 “Foi no velório daquele primo policia dele. O cara se afogou na banheira.” Me contava Rubens enquanto enchia nossos copos de cerveja.




quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sonhei com você.

  Sonhei com você.
 Quem já não ouviu isso? Ou ainda quem nunca disse isso para alguém? Sonhei com você. É o que eu dizia para Ana Flávia pelo telefone.
 “Sonhei com você.”
 “É por isso que você me ligou Carlos?”
 “É.” Eu disse. Então Ana Flávia começou a rir, e me disse que também havia sonhado comigo.
 Marcamos um encontro, um almoço. Já na mesa do bar, escutei a narrativa do sonho de Ana Flávia, no qual eu era o protagonista.
 No sonho dela, estávamos numa casa do começo do século XX, uma escada que dava para ambientes com enormes janelas, pisos hidráulicos antigos, e uma luz que entrava e iluminava as paredes.
 Ela seguia na minha frente, vestia uma calça jeans. Estava linda, bom agora já era a narrativa do meu sonho.   
 Percebemos naquele momento, que os nossos sonhos eram os mesmos. Estávamos eu e Ana Flávia, num lugar romântico. Talvez vivendo um romance. O que queria dizer aquela coincidência? Há muito tempo eu já achava Ana Flávia linda e muito sensual, mas a verdade é que mal a conhecia. Tínhamos amigos em comum. Só isso. Que experiência fantástica, ter o mesmo sonho, na mesma noite, com uma pessoa que também sonhou com você!
 De repente, um telefone toca. Depois percebi que era um barulho de reforma. Pisquei o olho, e Ana Flávia não estava mais lá. Fiquei olhando para teto do quarto. Maldito vizinho e sua reforma!
 Sim tudo não passou de um meta-sonho. Droga. Já no banheiro escovando os dentes, com dor de cabeça e certa ressaca, tive um pensamento:
 Será que ela, Ana Flávia, sonhou comigo? À tarde criei coragem e liguei para ela. Caixa postal. Tentei de novo à noite, pois tinha passado o dia pensando no sonho.
 “Alo.”
 “Ana Flávia?”
 “Quem é?”
 “É o Cacá.”
 Como ela não estava receptiva e não demonstrou nenhum entusiasmo com a ligação, mesmo porque, ela demorou em se lembrar de que Cacá era. O Carlos...
 “Ah sei. Este Cacá. Diga”.
 Foi de tamanha frieza, que não tive coragem de falar de sonho e tal.
 “Lembra que você falou que conhece um bom encanador? Lá na casa da Carol.”
 Ela não se lembrava de ter dito nada. E não conhecia nenhum encanador.
 “Acho que eu me enganei.”
 “Se enganou.” E após ter dito isso, despediu-se e desligou.
 Anos se passaram. Muitos anos. Que eu deveria até ter esquecido este sonho, bem como este telefonema. Mesmo tendo visto Ana Flávia outras vezes, nunca mais me lembrei do sonho.
 E como poderia? Nunca anotei em lugar nenhum. Nós esquecemos os sonhos.
 Descemos do taxi, numa rua chamada, Dom Bosco, no bairro Portenho de Almagro. Apertamos a campainha. A dona da casa, Cristina abriu a porta e subimos com as malas, eu e Raquel.
 Era uma escada bonita em curva, caímos num lugar com enormes janelas. Pisos originais de Buenos Aires da primeira metade do século XX.
 Depois ainda havia outra escada. A Raquel foi na minha frente, e por um instante eu reconheci a calça jeans que ela usava. Era uma calça, que eu tinha sonhado há muitos anos. Quando eu ainda nem fora apresentado para a Raquel. Seria possível?
 Eu reconhecia a casa. Seus terraços, o quarto, o banheiro, a cama. Mas eu nunca havia estado lá. Será que em outra vida? Quem conhecia a Cristina era a Raquel, não eu. Fora uma indicação de um amigo dela, um ator brasileiro. No lugar hospedam-se estrangeiros. São seis quartos.
 Ontem por acaso, encontrei Ana Flavia, na casa da minha amiga Carol. Falávamos de viagens. Era um pequeno grupo de amigos. Contei que voltara a pouco de Buenos Aires. Que tinha ido a uma Milonga, visto uma peça na Corrientes.
 Para o meu espanto, Ana Flávia disse:
 “Carlos, preciso te indicar uma casa em Almagro, que a dona, uma Argentina, só aceita hospedar por indicação de alguém que já passou por lá. É um lugar lindo. São só seis quartos.”  
 Desta vez fui eu que fui seco. Fingi que não conhecia casa nenhuma, nem o bairro de Almagro.
 “Manda pra mim depois.” Eu disse. E Ana Flávia ainda se saiu com esta:
 “De encanador eu não sei. Mas de lugares românticos, eu entendo.”
 Ela lembrava daquilo! Depois de tantos anos.
  Ela tomou um gole de vinho e disse baixinho, pra si mesma, olhando para o infinito:
“O lugar é um sonho. O lugar é um...”
 “Sonho”. Eu completei.
 Sorri, e ela ficou me olhando perplexa. Depois, franziu a testa como se tivesse descoberto algo. Olhou para copo, deu outro gole. E fez não com a cabeça. Algo como: “Não pode ser.”