segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Testemunho de um arrastão.


Estávamos ainda aguardando os pratos. Eu e minha namorada, jantávamos num restaurante Árabe descolado na Vila Madalena. Eu a havia buscado no trabalho, uma produtora de vídeo, bem perto da Rua Girassol, onde agora nos encontrávamos.
 Era uma noite feliz. Não tínhamos brigado, a paixão estava rolando no ar. Nos entendíamos tão bem. Vi uma conhecida na mesa ao lado. Ela parecia estar num encontro. Dei um oi de longe.
 Como nossa mesa era na porta, e outra mesa ficara vaga, os garçons gentilmente nos ofereceram trocar de mesa. No caminho para nova mesa, agora encostada na parede, parei alguns segundos, para conversar um pouco com a minha velha conhecida. Noite calma. O lugar tem uma atmosfera que mistura oriente com Vila Madalena, de um jeito contemporâneo.
 Em filmes, ou mesmo no circo e no teatro, as atrações são anunciadas. Um arrastão, um assalto, são uma cena, com começo meio e fim. Independente do estilo. Causa tensão.
 Mesmo quando se é só uma foto, ou um pedaço de cena, a platéia, ou o espectador tem de entender, que um personagem está roubando o outro.
 Foram só três minutos. Sem anuncio, sem trama, sem líder, sem organização alguma.
 O que eu senti? Posso afirmar que não foi síndrome de Estocolmo. Sei lá o que as pessoas sentem. Mas pra mim... Como dizer?
 Eu posso reproduzir este três minutos. A posição em que eu fiquei. Tudo o que eu pensei. Onde estava cada mão, pé. O que eu sussurrei para a namorada. Enfim tudo. Tudo o que eu vi e ouvi. As cores, as vozes... Mas como somos ensinados desde cedo para não reconhecer rostos e eu fiquei olhado para o meu prato vazio, logo não me é possível reconhecer ninguém.
 De tanto ler e ouvir sobre arrastões, não demora tanto tempo para sacar que você está fazendo parte de um. Como vítima.
 Não sei se é treinamento do Teatro. Mesmo porque até no teatro dizem que eu sou muito calmo. E acho que quanto maior o perigo mais calmo eu fico.
 Acontece que antes de entrar em cena, nos preparamos. Mesmo para um stand-up, ou show de palhaço. E se não rirem? E se não baterem palma? Bom, se não baterem palma eu não vou morrer por isso, correto?
 Andar de avião, praticar um esporte radical... Mas para tudo isso há um preparo, nada é assim de surpresa. Por maior que seja a adrenalina, já estamos aquecidos.
 O que eu quero dizer, e isto é algo muito particular. É que quando acabou o assalto e aqueles cerca de oito ou dez homens armados se foram, ficou uma sensação de quero mais.
 Já ouvi que jogadores de cassino são viciados na emoção de quando os dados ainda não pararam.
 Bombeiros, policiais, assaltante de bancos, soldados, eles têm esta emoção. Uma mistura de medo e prazer. Final de Copa do mundo, olimpíadas e resultado do vestibular são alguns exemplos.  
 Nestas horas ficamos totalmente livres. Esquecemos se estamos bem vestidos. Esquecemos nossa doença, nossa dor de amor, dívidas e até a eleição.
 Uma vez quando sofri um sequestro relâmpago, achei que iam me matar, e senti pena de mim, porque estava escrevendo uma peça de teatro e não poderia terminá-la.
 Mas dizer isso ao seu assassino:
 “Veja bem, você não pode me matar porque ainda não terminei de escrever a minha peça de teatro. Ela pode ser uma obra prima da dramaturgia nacional.”
 Acho que não é um bom argumento.
 Não acho que existam duas versões, para caracterizar um arrastão. Uma de esquerda e outra de direita. Sem maniqueísmo. Existe uma só. Quem pega em armas para realizar um ato banal dentro da democracia, é porque gosta dessa sensação.
 Acredito que seja muito mais forte que qualquer droga. Porque vem do nosso próprio corpo. Vicia. Liberta.
 Ruim é a expectativa. “Será que vão me assaltar se eu parar no sinal vermelho?”
 Durante é até um alívio. “Pronto finalmente aconteceu.”  
 Não gosto de pensar como sociólogo, porque eu não sou, nem tenho acesso a pesquisas ou a trabalhos sobre comportamentos sociais e tal.
 Mas querer substituir esporte, lazer e cultura pela violência, é uma tarefa muito árdua.
 Para não dizerem que sou um louco, digo que sexo ainda é bem melhor do que jogar entre a vida e a morte. Mas que essa adrenalina de um arrastão, é muito melhor do que um medinho controlado de parque de diversões e filminhos de terror. Ah! Isso é. 
 Não desejo que me aconteça de novo. Foi uma lição. Para eu entender que nem tudo é racional.
 Bom e para terminar, sou sim a favor de excluir um cidadão que ameaça outros com uma arma, do convívio da sociedade.
 Ainda mais quando eles são desconhecidos entre eles. Vítima e criminoso. Eu sempre estarei do lado da vítima.
O assalto acabou. Eu e minha namorada jantamos. Comida maravilhosa. No caminho para o carro, cruzamos com um grupo de Portugueses moderninhos bebendo vinho e rindo na calçada.
 Para a surpresa da minha namorada, eu contei ao grupo sobre o assalto, o arrastão, a um quarteirão dali. Eles se solidarizaram conosco e ainda nos chamaram pra ir a Mercearia São Pedro beber.
 Foi quando o Leo civilizado voltou e pediu para o Leo bárbaro sair. O curioso é que o Leo bárbaro é calmo, contido, frio, dissimulado, coordenado, rápido e feroz.
 Já o Leo civilizado é histriônico, comunicativo, afetado... Uma noite linda, luar e a tranquilidade da Vila. Nem mais sinal do pequeno exército mercenário que o destino nos colocou frente a frente.
 Era dia de São Francisco de Assis.