quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os sonhadores.


 Aceitaria a sugestão dos pais. Passaria uns meses na Europa. Na Itália. Foi um livro de turismo com uma foto de uma italiana num vestido de verão com os cabelos voando ao vento. Atrás uma rua com prédios antigos, mesas nas calçadas, motocas passando.
 Aqui no Brasil com seus 19 anos ele não era nenhum sucesso. Mas na Itália ele conseguiria “pegar” um monte de gatas. Seria o lugar ideal. Passar o verão estudando italiano, na Itália.
 Todos diziam que ela era linda, uma boca carnuda sensual, seios fartos, bunda, ela estava decidida, faria um book de modelo. A noite ela se imaginava desfilando.  Conheceria o mundo, a Itália, que ela tanto sonhava.
 Ele depois decidiria que carreira seguir, pensava em ser arquiteto, talvez economista. Ela seria modelo fotográfica, foi o que recomendaram. Hoje uma menina precisa ter mais de um metro e oitenta. Pelo menos, para fazer moda. Ela tinha um e sessenta. E era quase gorda. Quase. Mas um rosto lindo, modelo fotográfica. É.
 Era um dia realmente quente e de sol. Ela tomava um sorvete numa praça em algum lugar de Roma.
 Ele viu ali uma chance. Abordou a menina num inglês amador. A garota contou que era do Texas. Nunca ouvira falar de São José do Rio Preto, muito menos de São José do Black River, a “Califórnia” Brasileira.
 Combinaram um cinema, no outro dia foram a um museu, almoçaram. E o verão acabou.
 Ele resolveu estender a temporada e se mudou para o quarto dela. Ela morava numa pensão de americanos. 
 Ele compra uma máquina fotográfica usada. Começa a tirar fotos nas tardes livres. Roma era um cenário sem fim.
 Ela começou um curso de gastronomia. Acabou num restaurante. Na cozinha, na parte de sobremesas.
 Ele foi estudar fotografia. Conheceu uma modelo magrela e alta. Uma alemã. 
 Ela fugiu com um chefe espanhol. Dez anos se passaram.
 Ele tomava um sorvete em uma praça em algum lugar de Barcelona. Ela passa com uma menina de uns três anos. Se reencontram. Saem, vão à praia, ao teatro, ao parque.
  O marido dela volta de Portugal. Eles fogem para o Marrocos. O marido vai atrás. No hotel em Casablanca ele dispara a arma e mata os dois na piscina.
 Ela suspira. Abre os olhos e continua ouvindo aquele garoto brasileiro, contando de como será seu filme. Sim ele é diretor de cinema, ainda não fez nada, mas é.
 Quem sabe ela não seria uma estrela na próxima temporada de Cannes?
 Quem sabe? Sonhos são incrivelmente superiores e mais interessantes que a realidade. Nem sempre.
 E hoje? Ele quer saber. Alugam uma moto e saem em direção ao sul. Grécia, Istambul, Beirute...
 Sonhar definitivamente é um talento. Sol, praia, vinho, história, arte, e 20 poucos anos. 
 Entram numa igreja de mil anos e fingem casar. Saem e bebem, vão até a praia e dormem na praia. Agora são casados. O sol forte, o céu azul, o Mediterrâneo verde, verde como eles. 
 O mar sorri, ele já viu tantos casais jovens. Mas também já viu tanta guerra, tanta gente morrer afogada. 
 Mas hoje é verão. E Rio Preto está longe, lá para os lados do Texas. 
 Os dois correm pela praia, sem protetor solar, sem lenço e sem documento. 

domingo, 13 de outubro de 2013

O Ivan da Tia Marta.

  O Ivan da Tia Marta.
 Não me lembro quando foi e nem quem me falou, a primeira vez, sobre o Ivan da tia Marta.
 Acho que foi a própria, quando nós sobrinhos a indagamos se ela não casara, e não tivera nunca um namorado.  A tia solteira teria nos contado sobre o Ivan. Uma paixão sabe-se lá de quando, talvez ainda dos anos 60, ou até antes.
 O que eu sabia era que o Ivan fora frentista num posto de gasolina, meu avô, pai da Tia Marta, não permitiu o casamento. Ficando minha Tia Marta solteira até hoje.
 Depois Ivan tornou-se taxista, vindo a falecer há uns 15 ou 20 anos atrás.
 Lembro deste episódio e de um outro, que também faz parte da minha biografia não autorizada. Fabi, uma amiga atriz, me chamara para participar de um espetáculo infantil.
 Meu papel seria o de interpretar uma versão de Tarzan. Eu deveria ficar a peça toda sem camisa, de tanguinha, coisa que não me agradou. Aliás, nada me agradava no texto, inclusive o texto se chamar Peter Pan. O Tarzan era só um coadjuvante, praticamente sem fala.
 Resolvi ser então assistente de direção. E arrumamos um rapaz bem mais sarado do que eu, na época, para fazer o rei das selvas.
 O diretor, uma Tia velha, apaixonou-se pelo novo Tarzan. E passava os ensaios todos repetindo baixinho para mim:
 “A vida deste rapaz daria um filme”.
 Tempos depois, aprendi que qualquer vida dá um filme. Inclusive a vida da Tia Marta e do Ivan. Inclusive a sua leitor.
 Conto tudo isto, porque hoje encontrei num restaurante, o diretor do qual fui assistente, há uns dez anos. Assim por acaso. Ele e Tarzan continuam casados. São reais. E são felizes, estão montando um Nelson Rodrigues.
 Já o Ivan da minha Tia Marta, nunca terei certeza se ele realmente existiu. E não sei por que, mas se eu fosse escrever a biografia da minha Tia Marta, o Ivan é um dos fatos mais interessantes. Digo, o mais.
 Talvez o Ivan seja Vânia, mulher do Moacyr, que era frentista. Talvez minha tia tenha só cruzado com este frentista, Ivan, e trocado poucas palavras. O resto seria fantasia dela. Tantas possibilidades.
 O fato é que o Ivan acabou se tornando um tio. Um parente que eu nunca conheci. O Ivan da Tia Marta.
 E toda vez que eu visito a Tia Marta, eu tenho esta vontade de saber mais sobre o Ivan. E ela sempre me sai com respostas evasivas:
 “Seu avô não me deixou casar com ele”. “Virou taxista e depois morreu”.
 “Mas tia! Nem a cor do taxi a senhora pode contar? Eu quero detalhes tia.” 

domingo, 22 de setembro de 2013

Ensaio sobre os Corleones.

 Ensaio sobre os Corleones.

 Meses atrás fui a uma palestra sobre a atual situação política da Síria. Mas não se preocupe leitor, isto não tem nada a ver com os dias de hoje e sim com a obra de ficção:  The Godfather de Mário Puzo, com contribuição de Francis Ford Coppola. Simples assim.
 Acontece que o palestrante daquele dia, no caso meu irmão mais novo, usou a obra como uma analogia para explicar política internacional. Interessante como cada um enxerga a trilogia cinematográfica, eu não li os livros, como quer. O que é ótimo. Aqui vou dar a minha interpretação pessoal sobre ela, a obra. Diferente, mas não melhor do que a do Guga.
 Começo falando da palestra, porque o meu irmão ter citado os Corleones me deixou com vontade rever esta trilogia. Demorei um pouco, mas este fim de semana eu mergulhei nos filmes.
 E ao contrário do que meu irmão e muitos acreditam, não acho que Michael Corleone se tornou o maior chefe da máfia norte americana por acaso. Por acidente. Não. Começo falando sobre Vito Corleone, seu pai.
 Me identifico com Vito. Ele era um artista. Improvisava, era simpático, ambicioso também. Mas qual imigrante não é pelo menos um tantinho ambicioso?
 Acho que ele sim foi longe sem querer. A máfia ainda não tinha seus postos conquistados, devidamente ocupados na América. Os mafiosos antes de Vito eram bufões amadores e exibicionistas, falastrões. Não foi difícil superá-los.
 Vito viu seu pai ser assassinado, depois seu irmão e finalmente sua mãe, esta ultima bem na sua frente, quando ele tinha apenas nove anos. Com um histórico deste não é de surpreender que ele fosse violento. Um garoto de nove anos que em 1901 atravessa o atlântico sozinho precisa sobreviver?
 Vito Corleone foi apenas um imigrante bem sucedido. Um dos muitos chefões do crime organizado de Nova York. Talvez por um pequeno período de tempo o maior deles. O primeiro do raking. Mas ele não conseguiu se segurar. A concorrência era faminta. E tudo entrou numa confusão. Seu pequeno império não demorou a desmoronar. Se não existisse o jovem Michael, tudo seria perdido logo após sua morte.
 Os irmãos de Michael, Fredo e Sony, eram fraquíssimos. Não eram líderes, aliás, não eram nada.
 Quando Vito é baleado, Michael entra em cena. Mas aí é que reside o erro. Achar que Michael não era extremamente ambicioso e focado. Ele queria um futuro maior para si. Maior até que o que seu pai Vito sonhara. Mas até então o jovem era distante e vivia como um universitário.
 Não é a toa que na terceira parte, Michael se torna além de um homem de negócios dentro da lei, com todas as atividades legalizadas, um dos homens mais ricos do planeta. Rico e influente.
 Vito... Vito coitado. Ok, ele era charmoso, e um sobrevivente. Seu charme e sorte o levaram para longe. Claro que era ousado. Mas no fundo há um certo limite para um imigrante.
 A segunda geração, a de Michael, é sempre a mais americana, ou brasileira no nosso caso. Michael precisa se agarrar a cultura americana. E aqui convenhamos é uma terra de imigrantes, nada mais nacional do que o filho do imigrante.
 Ele vai para faculdade e conhece Kay. É óbvio que Michael quer uma mulher não italiana. Ele desde cedo quer superar aquilo. Quer transcender as origens.
 É ele que faz o estado de Nevada. É um dos criadores de Las Vegas. Faz negócios com judeus, com americanos wasps (brancos protestantes). Tenta expandir seus negócios para Cuba e para o Oeste.
 Seu pai Vito, apesar de padrinho de Frank Sinatra era um provinciano perto de Michael. Provavelmente até Frank Sinatra fosse menos americano que Michael.
 É claro que ele acaba casando com uma siciliana, quando estava fugido e longe de Kay. Mas é um casamento de uma americano com uma siciliana. O sonho dele era ser grande, grande como o seu país, os EUA.
 É por isso que Michael se alista para lutar na segunda guerra. Ele ama os EUA. Ele é os EUA.
 Michael inova a máfia, ele a legaliza e está um passo na frente dos próprios políticos americanos. Isso deixava os poderosos americanos mais expostos, eles achavam que estavam lidando com um ítalo-americano, enquanto Michael era cem por cento americano.
 Ele se ofende quando recebe o título de o Ítalo-americano do ano. Ele nunca se auto refere como sendo um italiano e quando fala da Sicilia, ele diz: Este país, eles... E não, nós, e meu país.
 Eu acho que Michael não é uma continuação da Máfia, nem perpetuação das tradições milenares da Sicilia. Michael é o fim da máfia. Um fim que veio de dentro para fora.
 Ele confessa a irmã, já mais velho, que quanto ele mais sobe, quanto mais poder ele tem, quanto mais ele tenta ser honesto, mais podridão, mais miséria e corrupção ele vê.
 Michael é um herói trágico. Michael sempre odiou os mafiosos. Com exceção dos da sua família.
 “Eu preciso de advogados e não de valentões”.
 Vito e Michael não tem nada em comum. A não ser o fato de serem pai e filho. A cabeça de Michael é exata, ele nunca se confunde. Vito se esquece embaralha tudo e se salva com o seu charme pessoal.
 Michael é tão americano, quem sem se dar conta, seu filho Antony se torna um artista. Cantor de ópera. E não um italiano mafioso.
 E sua última frase no filme, ao sair da ópera de Palermo depois de uma performance de Tony, é:
 “Agora os Corleones serão lembrados por uma voz”.
 Infelizmente esta voz, é o grito de Al Pacino ao ver sua filha, Sofia Coppola cair baleada na sua frente, nas escadarias do lado de fora da Ópera. Lado de fora?

 Michael não conseguiu vencer a Sicilia. Lamentavelmente. 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

C`eravamo tanto amati.

 Eram três. Inseparáveis. Carlão, Dedé e Mafalda. Conheceram-se na faculdade de sociologia. Durante mais de vinte anos foram marxistas convictos.
 Mafalda era agora professor de sociologia numa renomada universidade. Tipo USP. Estava fazendo pós-doutorado. Casara-se com Denise, uma quarentona, farmacêutica, que tinha um filho do primeiro ou segundo casamento. Marcelinho, de dez anos. 
 Dedé era músico, casado com Fátima, praticamente quarentona. Fátima era esteticista. Tanto Fátima quanto Denise não eram politizadas. Tinham aquele sonho de classe média. Apartamento próprio, carro zero, viagem para Miami e churrascaria rodízio nos finais de semana.
 Dedé ainda não tinha filho. Fátima queria muito um, mas ele achava que não valia a pena ter um filho antes da revolução.
 Sim leitor, você ouviu bem. Revolução. Os três amigos tinham também o sonho de conhecer a Coreia do Norte e libertá-la da tirania capitalista da Coreia do Sul. Ou ainda libertar a Coréia do Sul dos tiranos capitalistas. Estava tudo um tanto confuso. Mas sonhavam.
 Eram marxistas convictos. Por isso tomaram um susto naquela sexta-feira fim de tarde, quando tomavam uma cerveja num boteco de Perdizes.
 “Estou pensando em mudar de religião.”
 Carlão criou coragem, achava que depois do FHC, do Lula e Dilma, nada mais fazia sentido. Acreditou que os amigos entenderiam e até fariam o mesmo. É como se ele estivesse saindo do armário. E os amigos sairiam em seguida.
 “E para que religião você vai mudar?” O desafiou Mafalda. Aquilo não poderia ser sério. Era mais uma piada do Carlão. Largar o Marxismo? Nunca.  
 “Estou pensando em seguir o Cristianismo.” Os amigos caíram na risada e Mafalda pediu mais uma cerveja e uma porção de amendoim.  
 “Li um livro e me dei conta, que é uma tradição que conheço desde criança.”
 “Cristianismo?” Gritou Dedé.
 “Sim. Cristianismo.”
 Os outros dois pararam de rir e perceberam que a coisa era séria mesmo.
 “Eu conheci esta garota, Ana Paula. Ela é budista. Me levou para ver os templos, fazer meditação, parei de comer carne e tal, mas me dei conta de que, se eu não for mais marxista, eu vou ser é católico mesmo.”
 Mafalda o questionou se ele não acreditava mais no Marxismo. Carlão, disse que nada mais fazia sentido.
 “E depois... Eu gostei deste novo Papa. Ele me tocou o coração.”
 “O Papa? Eu nem sei que é o Papa!” Exclamou Dedé.
 Aquilo era demais. Carlão, se tornar menos radical, tudo bem. Carlão começar acreditar no livre mercado, na livre iniciativa, propriedade privada, seria triste, tudo bem também. Mesmo porque hoje que diferença na prática existia para eles? Fosse aquela cerveja de multinacional, ou uma cachaça estatal, eram uns perdedores mesmo.
 Casados com mulheres burras e feias. Viviam duros e nem tinham mais um discurso que fizesse sentido. Eles nem sabiam qual era direito a capital da Coréia do Norte, algo como Ping Pong, sei lá.
 Se Carlão se transformasse em Budista, e estivesse com uma menina de vinte anos, curtindo uma praia, natureza vá lá, eles entenderiam. Mas a igreja católica? Aquilo era demais. Deus nem existe.
 E Carlão nem fazia o estilo Hippie. Era o oposto de Hippie, andava de carro. Fazia a barba, era o único que fazia a barba na escola de sociologia. Louco!
 “Mas Antonio Carlos nós fizemos faculdade de sociologia. Como você pode acreditar em Deus?” Questionou Mafalda.
 “Sei disso. Me arrependo. Se eu tivesse dezoito anos hoje, teria escolhido o seminário, mas naquela época, anos oitenta... Eu nunca me identifiquei com o João Paulo II.”
 “Você não pode mudar sua fé, sua história por conta de um Papa!” Gritava Mafalda. Mas Carlão não se importou. Deu de ombros. E eles mudaram o assunto para futebol.  
 Na semana seguinte, Carlão parecia o mesmo. Mas foi Dedé quem disse que estava se separando da Fátima. Depois de chorar muito ele confessou. Fátima estava tendo um caso.
 “E você conheceu o cara?” Perguntou Carlão.
 “Cara?” Dedé disfarçou, mas logo em seguida disse: “É a professora de inglês dela”.
 Os amigos não riram.
 “E olha que é feia pra danado. Eu mesmo não a pegaria.” E desatou a chorar. Os amigos seguraram sua mão e o consolaram. Também Fátima era um canhão. Canhão e chata, agora Dedé arranjaria uma gatinha linda de vinte anos. Eles diziam. Uma amiga budista de Ana Paula quem sabe.
 “Quem sabe.” Ele suspirou com uma esperança.
 “Claro! Que mulher não gosta de um músico?” Perguntava Carlão.
 Pediram mais duas cervejas e começaram a falar de futebol.
 Na semana seguinte foi à vez de Mafalda soltar a bomba. Dedé estava deprimido, Carlão pensativo, distante. Mafalda muito ansioso quebrou o silencio:
 “Matei um homem”.
 Carlão olhou para Dedé. Ambos deram de ombros. E pediram mais duas cervejas. Minutos depois, Dedé quis saber.
 “Quando foi isso Mafalda? Esta sua história.”
 Mafalda, pensou, pensou, pensou e por fim disse curto e grosso. “Há já faz muitos anos.” Como alguém que não quisesse dar continuidade ao assunto.
 E começaram a falar de futebol. Mafalda ficou aliviado de não terem perguntado detalhes. No fundo os amigos sabiam que era mentira. Mas estavam satisfeitos pelo equilíbrio ter retornado a mesa.
 Na semana seguinte, puderam voltar a falar da Coréia do Norte. Sobre o antigo plano de adequar a nova realidade deles.
 Uma das mudanças foi decidir que a Coréia do Norte seria evangelizada. E receberia a visita do Papa. Riam. Tudo fazia sentido de novo.

 Nós que nos amávamos tanto, é o título de um filme de Ettore Scola.





quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Cada um na sua cama.

 Era uma festa de umas duzentas pessoas. Uma casa cinematográfica. Só os Vips haviam sido convidados. Ela sentiu alguma coisa estranha na mordida. Será que a capinha do dente tinha caído? Colocou o salgado numa mesa, passou a língua pelo dente e correu para o banheiro.
 Ele começou a sentir calor. Estava muito quente na festa. Tentou tirar o blazer. Não conseguiu. Ficou com a impressão de que a roupa estava presa e não saía.
 Ela se olhava no espelho e pensava: “Fodeu”. Na verdade era só uma parte pequena do dente, o finalzinho do dente da frente. Aquilo, o buraquinho, ficava até sensual. Mas para ela era o fim. Melhor ir para casa.
 Ele estava agora com mais calor e suando. Ficou preocupado com as manchas debaixo do braço. Foi para o terraço enquanto a esperava de volta do banheiro.  Aquele redondo de suor que chamam de pizza. Melhor ir para casa. Mesmo porque ele não tivera tempo de tomar banho. Mas ele tinha que se despedir dela. “Ah! Lá está ela”.
 Ela voltara do banheiro, séria. Muito séria. Ele falava sem gesticular os braços. O que o deixava com uma impressão de pessoa dura, sem ginga. Desajeitada. Ela dançava com cara de brava. E ele ficava parado para não mexer os braços.
 Ela permanecia com uma expressão antipática, de boca fechada. O que o deixou mais desconcertado ainda. “Será que ela viu as minhas pizzas debaixo do braço?”
 Ela queria rir e não podia. Sentia-se uma idiota com a cara de neutralidade que estava fazendo. Mas não queria arriscar dele ver seu dente faltando, ou melhor, um pedaço dele que estava lá minutos antes.
 Ele não mexia os braços. Não arriscava nem beber mais, para não ter de levantar o copo e mostrar o suor. “Mas também para quer vir com roupas tão justas?” Ele pensava. “Agora é tarde”.
 Na hora de se despedirem, ela deu um sorriso. “Será que ele viu o dente faltando?”
 Ele ficou tão contente de ter conseguido chegar em casa. Ninguém vira seu suor.
 Ela ria tanto de ter escapado sem revelar seu dente quebrado.
 Ele tomou um banho. Ela viu um pouco de televisão.

 E os dois dormiram felizes naquele sábado à noite. Cada um na sua casa. Cada um no sua cama. Um pensando no outro. Mas com a imagem de ambos, preservada. Que é o que mais vale nesta vida afinal de contas. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Deus existe?

 Deus existe?

Outro dia eu descobri que está acontecendo uma revolução no jornalismo. Sim. Agora graças à nova tecnologia, qualquer um pode ser um repórter. Logo eu que sou um bombeiro, agora posso ser um jornalista também.
 Não que eu vá deixar de ser Bombeiro. Nem ator de novelas. Eu estou fazendo a novela das três da manhã.
 Escolhi fazer uma matéria sobre Deus. A vida dele, e todas as polemicas que envolvem seu nome.
 Tipo sua vida financeira, amores e a paternidade de Jesus. Este inclusive que eu já tive o prazer de conhecer. Lá num clube de campo que às vezes minha mãe me leva. Tem lá uma comida sofrível, mas a piscina é boa. Fico meses sem sair de lá.
 Jesus é um dos habitues. Quando me vê por lá grita: “Ator! Oh ator!”. O que me deixa até um pouco irritado porque não gosto de fãs histéricos.
 Mas seria muito difícil entrevistar Jesus sobre seu pai. A cada avião que passa, ele grita: “Isso aí, este barulho, não é avião não! É meu pai! Papai!” Para não contrariá-lo eu concordo. Mas como passa muito avião por este clube de campo, e ele gosta mais de falar de um acidente de carro que ele teve, do que de Deus, nossas conversas são sempre interrompidas. Mesmo porque o tal acidente aconteceu nos anos 70, quando Jesus disse que ganhou na loteria. Acho que naquela época a loteria era mais fácil.
 Bom voltando. Lembrei-me de um vizinho. Um cara que eu sempre visito umas duas, três vezes por semana. Ele conhece, sabe tudo sobre remédios. Não os remédios que o Jesus usava nos anos setenta. Outros. Uns para me deixar com, quer dizer, digo sem os delírios.
 Eu tomo todos. Não porque eu tenha delírios, mas para não desapontar este meu vizinho. Aliás, um vizinho de cidade, não de prédio. Meu vizinho me vê na novela das 3 da manhã, disse que estou melhor que o Marlon Brando. Grande coisa.   
 Cheguei ontem na casa dele. Sentei naquele sofá dele. Foi quando eu vi um quadro com uma montanha coberta de neve. Ele me disse que era o Canadá.
 Foi aí que eu adorei esta coisa da nova mídia, pós-industrial. Eu posso mudar de reportagem a hora que eu quiser. E convenhamos, gnomos no Canadá, é bem mais interessante do que Deus, Jesus... No Canadá existe até ursos. Sim, ursos e neve. E alces.
 O que eu não entendo é porque gnomos não acreditam em E.T.s? Meu vizinho disse que ele não era a pessoa mais indicada para falar sobre Deus. Eu deveria procurar um padre.
 O que me faz pensar. Toda vez que eu quero falar sobre Deus, as pessoas sempre ficam constrangidas, esquisitas e desviam a conversa. Será? Será...
 Será que eu sou Deus? Agora tudo faz sentido. Este mundo aí fora não existe. Tudo só acontece quando eu vou aos lugares e vejo as pessoas. Fora isso, as pessoas ficam descansando. Sim. Agora em Londres, por exemplo, está tudo vazio porque eu estou aqui em São Paulo.
 Mas e no Canadá? E no Canadá?
 “Jesus você acha que está acontecendo alguma coisa neste exato momento no Canadá?”
 “Não é avião não! É meu pai!” Ele grita. Depois de passar o avião ele vira-se para mim:
 “Aqui é o Canadá.”
 Afinal concluo que assim como o Canadá, Deus é tão grande, que não precisa existir.
 Eles existem nos quadros do meu psiquiatra, digo meu vizinho. Na cabeça dos padres da igreja. Nos atlas escolares...
 E nos milagres. E os milagres acontecem todos os dias. Por isso eu tenho fé. Tenho fé que um dia eu vou me curar. E vou, numa dessas máquinas que voam que o Jesus chama de pai, conhecer o Canadá.
 Vá com Deus. Sempre. Porque acreditar em Deus, não tem nada a ver com saúde mental. Uma coisa, uma coisa, outra coisa, outra coisa. Eu não preciso abandonar minha fé para ser saudável.

 Pronto, vou publicar. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A sereia de Palermo.

A sereia de Palermo.

Era um dia de céu completamente azul. Uma primavera, nem quente nem fria. Ele comia numa peixaria que era restaurante japonês no almoço. Balcões coletivos eram usados como mesa e os clientes se sentavam em banquinhos.
 Pelo enorme vidro do lugar ele avistava o trampolim do outro lado da rua. Foi quando ele a viu pela primeira vez. A sereia de Palermo usava um maiô verde e era uma saltadora. Todas as outras meninas vestiam maiôs amarelos. Ele sentiu que seu destino estava ligado ao dela.
 “E o resto?” Marcela me perguntou. Assim que leu este inicio de conto.
 “Só tenho isso por enquanto.” Eu disse.  “Adoro esta imagem para começar o filme.”
 E era verdade. Marcela deu de ombros. Garotas e piscinas, o cinema estava cheio de garotas, praias, piscinas, lagos... E mistérios.
 Sai da casa de Marcela, uma amiga escritora, romancista, e fui para um encontro com um investigador.
 Era uma delegacia na zona Norte de Buenos Aires. Afonso, o policial era primo de um amigo. Eu tinha mencionado num bar que frequento, sempre com os mesmos amigos de faculdade, minha intenção de conhecer alguém da policia. Uma forma de pesquisa deste universo, no qual eu tinha interesse para escrever uma história policial. Henrique ligou na mesma hora para o primo e marcou o encontro entre nós.
 Afonso foi muito simpático. Era bem mais velho do eu imaginava que ele seria. Estava investigando dois crimes. Num primeiro um homem de 40 anos morrera ajoelhado ao lado de uma cama. Me mostrou a foto.
 “A teoria é que ele misturou remédios com bebidas.” Me disse o investigador Afonso.
 O outro caso era um senhor com Alzheimer, que tinha caído de uma escada no quintal. Seu filho tivera de sair e largara o senhor sozinho em casa. Que subira numa escadinha no quintal cairá e batera a cabeça. Fora encontrado morto pelo próprio filho.
 Tudo deveria ser investigado. Ambos os casos poderiam ter sido assassinatos. Ou não. Aquela dúvida me fez sair de lá eufórico. Talvez os dois casos, as duas vítimas, tenham sido mortas pelo mesmo assassino.
 Talvez aparecesse uma terceira vítima, que ainda não fora encontrada. Ou ainda um quarto assassinato, quem sabe. Quarto? Eram tantas opções que eu nem sabia por onde começar. Eu teria de ler os relatórios, ir aos locais dos crimes. Entrevistar conhecidos das vítimas, enfim arrumar um motivo, tudo o que chamamos investigar.  
 No dia seguinte. Ele foi até o clube militar. Chamou o técnico dos saltos ornamentais e pediu para falar com a menina de maiô verde. Ela vestiu um roupão e sentaram na lanchonete do clube.
 Ele, o detive Afonso mostrou as fotos das vítimas para ela, e perguntou se ela os conhecia.
 Ela sabia sim quem eles eram. Mas não os conhecia. Eram dois dos três jurados do seu ultimo campeonato, no qual ela ficara em segundo lugar. A terceira jurada estava desaparecida.
 Por fim Afonso perguntou:
 “Por que você usa maiô verde, se todas as outras meninas usam maiôs amarelos?”
 “Para ser notada”. Respondeu a sereia.
 Uma semana depois, reencontrei a turma. Henrique não estava.
 Cadê o Henrique? eu perguntei.
 “Foi no velório daquele primo policia dele. O cara se afogou na banheira.” Me contava Rubens enquanto enchia nossos copos de cerveja.




quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sonhei com você.

  Sonhei com você.
 Quem já não ouviu isso? Ou ainda quem nunca disse isso para alguém? Sonhei com você. É o que eu dizia para Ana Flávia pelo telefone.
 “Sonhei com você.”
 “É por isso que você me ligou Carlos?”
 “É.” Eu disse. Então Ana Flávia começou a rir, e me disse que também havia sonhado comigo.
 Marcamos um encontro, um almoço. Já na mesa do bar, escutei a narrativa do sonho de Ana Flávia, no qual eu era o protagonista.
 No sonho dela, estávamos numa casa do começo do século XX, uma escada que dava para ambientes com enormes janelas, pisos hidráulicos antigos, e uma luz que entrava e iluminava as paredes.
 Ela seguia na minha frente, vestia uma calça jeans. Estava linda, bom agora já era a narrativa do meu sonho.   
 Percebemos naquele momento, que os nossos sonhos eram os mesmos. Estávamos eu e Ana Flávia, num lugar romântico. Talvez vivendo um romance. O que queria dizer aquela coincidência? Há muito tempo eu já achava Ana Flávia linda e muito sensual, mas a verdade é que mal a conhecia. Tínhamos amigos em comum. Só isso. Que experiência fantástica, ter o mesmo sonho, na mesma noite, com uma pessoa que também sonhou com você!
 De repente, um telefone toca. Depois percebi que era um barulho de reforma. Pisquei o olho, e Ana Flávia não estava mais lá. Fiquei olhando para teto do quarto. Maldito vizinho e sua reforma!
 Sim tudo não passou de um meta-sonho. Droga. Já no banheiro escovando os dentes, com dor de cabeça e certa ressaca, tive um pensamento:
 Será que ela, Ana Flávia, sonhou comigo? À tarde criei coragem e liguei para ela. Caixa postal. Tentei de novo à noite, pois tinha passado o dia pensando no sonho.
 “Alo.”
 “Ana Flávia?”
 “Quem é?”
 “É o Cacá.”
 Como ela não estava receptiva e não demonstrou nenhum entusiasmo com a ligação, mesmo porque, ela demorou em se lembrar de que Cacá era. O Carlos...
 “Ah sei. Este Cacá. Diga”.
 Foi de tamanha frieza, que não tive coragem de falar de sonho e tal.
 “Lembra que você falou que conhece um bom encanador? Lá na casa da Carol.”
 Ela não se lembrava de ter dito nada. E não conhecia nenhum encanador.
 “Acho que eu me enganei.”
 “Se enganou.” E após ter dito isso, despediu-se e desligou.
 Anos se passaram. Muitos anos. Que eu deveria até ter esquecido este sonho, bem como este telefonema. Mesmo tendo visto Ana Flávia outras vezes, nunca mais me lembrei do sonho.
 E como poderia? Nunca anotei em lugar nenhum. Nós esquecemos os sonhos.
 Descemos do taxi, numa rua chamada, Dom Bosco, no bairro Portenho de Almagro. Apertamos a campainha. A dona da casa, Cristina abriu a porta e subimos com as malas, eu e Raquel.
 Era uma escada bonita em curva, caímos num lugar com enormes janelas. Pisos originais de Buenos Aires da primeira metade do século XX.
 Depois ainda havia outra escada. A Raquel foi na minha frente, e por um instante eu reconheci a calça jeans que ela usava. Era uma calça, que eu tinha sonhado há muitos anos. Quando eu ainda nem fora apresentado para a Raquel. Seria possível?
 Eu reconhecia a casa. Seus terraços, o quarto, o banheiro, a cama. Mas eu nunca havia estado lá. Será que em outra vida? Quem conhecia a Cristina era a Raquel, não eu. Fora uma indicação de um amigo dela, um ator brasileiro. No lugar hospedam-se estrangeiros. São seis quartos.
 Ontem por acaso, encontrei Ana Flavia, na casa da minha amiga Carol. Falávamos de viagens. Era um pequeno grupo de amigos. Contei que voltara a pouco de Buenos Aires. Que tinha ido a uma Milonga, visto uma peça na Corrientes.
 Para o meu espanto, Ana Flávia disse:
 “Carlos, preciso te indicar uma casa em Almagro, que a dona, uma Argentina, só aceita hospedar por indicação de alguém que já passou por lá. É um lugar lindo. São só seis quartos.”  
 Desta vez fui eu que fui seco. Fingi que não conhecia casa nenhuma, nem o bairro de Almagro.
 “Manda pra mim depois.” Eu disse. E Ana Flávia ainda se saiu com esta:
 “De encanador eu não sei. Mas de lugares românticos, eu entendo.”
 Ela lembrava daquilo! Depois de tantos anos.
  Ela tomou um gole de vinho e disse baixinho, pra si mesma, olhando para o infinito:
“O lugar é um sonho. O lugar é um...”
 “Sonho”. Eu completei.
 Sorri, e ela ficou me olhando perplexa. Depois, franziu a testa como se tivesse descoberto algo. Olhou para copo, deu outro gole. E fez não com a cabeça. Algo como: “Não pode ser.”

domingo, 30 de junho de 2013

Mas e a Claudinha?

Luciano entrou assim, por acaso, numa livraria. Estava com o dia livre. Olhava as prateleiras, pegava alguns livros, via por alguns segundos e os devolvia. Pela janela,  um dia nublado e frio.
 Não percebeu a menina se aproximar.
“Posso ajudar?”
 Não podia acreditar naquele anjo de pele branquinha e grandes olhos verdes. Pediu um livro do Rubens Fonseca.
 “Você quer dizer Rubem?”
 “Eu nunca sei se é Rubens ou Rubem.” Ele riu dele mesmo. Então ela sorriu e disse:
 “É Rubem. Eu lembro porque o meu pai também é Rubem.”
 Ele passou a frequentar a livraria. A estudante de psicologia e vendedora, Claudinha, sempre estava lá. Numa outra tarde, outro dia livre de Luciano, aliás, os dias livres de Luciano eram bem frequentes, ele pediu um Mário Vargas Llosa que ficava bem no alto.
 Claudinha, era Claudinha, pois era baixinha. Teve de subir na escada e Luciano pode ver aquele pedaço das costas da menina próximo a bunda, aquele que vemos quando uma menina levanta os braços.
 Ele ficou obcecado por aquele pedaço de costas branca. Voltou só três semanas depois, já que era verão e ele acabou indo viajar para a praia. Queria contar sobre o Mário Vargas Llosa. E qual não foi a sua surpresa ao ver a livraria fechada. Iriam construir um prédio no local. É o que um dos engenheiros que estava lá lhe disse.
 “Mas e a Claudinha?”
 O engenheiro disse que não sabia de nenhuma Claudinha. E que também não tinha o telefone do antigo dono da livraria.
 Passaram-se vinte anos. Luciano agora era um advogado, sócio de escritório renomado.
 Foi para um bar beber num fim de expediente. Pediu uma caipirinha de cachaça mesmo. Outro sócio passou no mesmo instante em que ele fazia o pedido. E comentou aquilo com um gesto de deboche:
 “Cachacinha né Doutor Luciano?” Gargalhou e seguiu para outra mesa.
 Aquilo o aborreceu demais. Mas escondeu a raiva. O celular toca, é sua namorada recente, Eduarda.
 Ela aparece com uma amiga. Claudinha. A mesma Claudinha, agora psicóloga. Ficam os três na mesa conversando e bebendo. Passam-se horas. Eduarda olha pela janela e diz:
 “Adoro este prédio.”
 “Sabe que ai era uma livraria antes?” Pergunta Luciano.
 “Claro que eu sei, eu lembro quando a Claudinha trabalhava nela”.
 “Você trabalhou na livraria que tinha aqui, Claudinha?”
 “Dois anos.”
 “Espera que eu vou lembrar o nome dela.”
 “Livraria Tavares.” Disse Claudinha. “Trabalhei dois anos nela.”
 “Então com certeza você me atendeu muito.”
 Claudinha olhou bem para Luciano.
 “Com certeza sim.”
 “Quanta coisa que já existiu em São Paulo.” Suspirou Eduarda.
 “Quantas vidas e histórias.” Completou Luciano.
 “Atendi tanta gente nesta livraria.”
 Neste momento Luciano reconheceu Claudinha.
 “Mas agora eu estou te reconhecendo.”
 “Eu também to vendo que você não é estranho.”
 “Das aulas de francês, lembra?”
 “Claro, naquela escola de línguas. Nossa! Lá se vão muitos anos. Uns cem?” Ri.
 “Acho que oito.” Concluiu Luciano. “Nós falávamos de Mário Vargas Llosa.”
 Claudinha não se lembrava disso, mas concordou.
 “Bem, tenho que ir.”
Claudinha levantou-se e quando foi pegar a bolsa, Luciano pode ver um pedaço branquinho de suas costas. Ficou fascinado com aquilo.
  Luciano e Eduarda não deram certo. Terminaram dias depois.

 Ele acabou casando com uma sócia do escritório, que as terças e quintas, faz terapia com uma psicóloga. A doutora Cláudia. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Diário de Nova Yorque. 3

O lado mais escuro.
A gente imagina um americano. Como ele é? Uma americana. Uma loira?
Sim uma loira quando a gente quer imaginar uns Estados Unidos belo.
 Por quê? Uma loira é mais bela que uma latina? Ou ainda uma loira não pode ser uma latina?
 Quantas perguntas. Agora imagine um brasileiro. Como ele é? Provavelmente você imaginou alguém cujos ancestrais não nasceram neste continente americano.
 E um mexicano? Um boliviano ou um peruano? Seriam um asteca, um índio, um inca ou um maia? Talvez ainda um ibérico? Um mestiço?
 No Brasil a cultura se misturou. Mesmo quando o sangue não se misturou.
 O que é o Harlem? Um bairro dentro de Nova Yorque só com negros. E estes negros são menos americanos do que os brancos?
 O Harlem hoje, 2013, é um bairro MUITO rico. Tão rico quanto os melhores bairros de São Paulo. (Se o leitor quiser saber de onde provem o dinheiro pesquise na internet. Mas creio que o lugar recebe uma ajuda estatal. Ou ainda governamental como dizem por aqui.) Mas não é disso que se trata este texto. O comércio é superior à média de São Paulo, assim como a vida cultural. As igrejas são bem frequentadas. Quatrocentas delas. Digo, praticamente lotadas.
 Depois da missa, eu e a minha esposa Livia, resolvemos tomar um Brunch de domingo. Mistura de almoço e café da manhã. Da rua não podíamos ver direito o interior do lugar, um dinner, como chamam por aqui, uma espécie de lanchonete, que serve de manhã até de noite e não tem cozinha bem definida. Aliás, concertando, tem cozinha bem definida sim. São como nossas padarias, ou botecos, enfim.
 O lugar era grande e estava praticamente tomado. Só havia uma mesa, próxima a saída. Outra mesa do lado era ocupada com turistas europeus brancos (todo europeu é branco?), que também vão atrás dos cultos de domingo nas igrejas batistas, para admirar os negros cantarem no coro.
 Uns poucos funcionários hispânicos (3) e muitos, muitos negros. Nenhum mulato, tal qual na igreja, tal qual na rua.
 Eu pelo menos, com minha cabeça brasileira, esperava encontrar algo parecido, ou pelo menos similar a uma favela brasileira. Pobreza, criminalidade, alegria, pagode, policia violenta, tráfico, abandono do poder público, prostituição infantil...
 O Harlem não tem absolutamente nenhuma destas características. O Harlem inacreditavelmente parece muito mais Tarantino na estética do que Spike Lee. Na estética e não no conteúdo. Nem sinal de Woody Allen.
 Definitivamente Scott Fritz Gerald é tão estrangeiro para eles quanto para mim. E Eddie Murphy passaria completamente despercebido aqui.
 A gente não sabe se ri, se fica com medo, se relaxa, mas o fato é que o lugar só tem negros.
 De tanto ver galerias e museus por aqui, no começo até parece uma instalação moderna. Sabe aquelas que se utilizam da repetição? Um lugar só com carecas, só com pessoas baixas, só com pessoas gordas, pessoas só de chapéus, sei lá.
 Aí percebo que os “turistas” são uns esquerdistas americanos brancos, ou talvez gente da Columbia University, fingem normalidade, mas não conseguem ficar muito tempo no lugar. Pedem a conta e saem. Agora somos só nós dois (eu e a Livia) e eles.  
 Café americano, panquecas com melado, ovos mexidos, torradas, tudo absolutamente americano, mas as pessoas eram só negras.
 Nesta hora entendo aquela frase, tanto usada para os negros no ocidente:
 “Sua cor já é um problema”.
 Ao entrarmos pela porta a Lívia e eu, já criamos um desequilíbrio. Já criamos um problema, sem ao menos estar atrás de um.
 “O que vocês estão fazendo aqui? Embora seja domingo, aqui não é turístico. É só uma lanchonete como outra qualquer. Acontece que é uma lanchonete no Harlem”.
 Ninguém nos abordou. Nem nunca vou saber o que eles pensaram. E se realmente ligaram para nós.  
 Saímos de lá, andamos pelas ruas, lojas e museus. Lorca disse uma vez que os negros americanos são os maiores atores do mundo. Claro que isto é uma bobagem. Ou ainda um exagero. A cor não define um talento. Mas uma cultura pode ser sim mais teatral. Mais histriônica e visceral.
 Em pouco tempo você percebe que há diversidade no Harlem. Seus olhos começam a identificar padrões que se repetem.
 Há o negro gangster, o negro intelectual, o negro engajado, o negro artista, o negro capitalista, o negro racista, o negro com ginga, as negras exibicionistas, as senhoras negras simpatiquérrimas, os negos sábios, os malandros, os direitistas, os negros velhos que parecem tão jovens.... E são tão americanos. E tudo tão musical.
 O Harlem é uma nação dentro de uma nação. Lá vimos à bandeira americana onde o branco era substituído pelo preto. É sério, as listras e estrelas eram pretas.
 A Vai Vai em São Paulo é o encontro da África com a Itália. O Bixiga é a terra do Adoniran Barbosa.
 O Harlem é o Harlem. Não é África, não é Inglaterra, não é o Mississipi.
 O Harlem não tem nada de Brasil.
 Com certeza deve haver muita maldade por lá. Exatamente como em todo lugar, não sejamos ingênuos.
 Aos domingos o número de turistas europeus é grande no bairro. Não vi asiáticos nem brasileiros.
 Uma pena. Talvez os brasileiros achem que os negros americanos sejam mais parecidos com os brasileiros do que os brancos americanos. Por isso não vão conhecer. Com exceções, claro.
 Em minha opinião, leitor brasileiro, o Harlem é uma cultura a parte. Aí que gafe, digo, uma cultura original, sem matriz. E é uma grande e belíssima cultura.
 Espero que o leitor entenda que este texto é uma impressão minha do Harlem, e não um tratado sociológico. Se quiser informações precisas, dê um Google.
 Se vier para Nova Yorque, sim com Y mesmo. Pegue o metrô e venha para o Harlem.
 O mais incrível é que ninguém vai te pedir o passaporte na saída do metrô.
 Mas vá preparado, os habitantes do Harlem vão te gozar, vão-te amedrontar, vão te emocionar.
 Como o pastor de lá disse, eles são os cristãos contemporâneos.
 São talvez, proporcionalmente, umas das comunidades que mais inovam no planeta. A missa deles é centenas de vezes, mais interessante do que a católica.
 Mas eles não sabem disso. Acho que o perigo, é que quando descobrirem o quanto são interessantes, eles deixem de ser.
 Mas até lá, vá visitar o Harlem. Imperdível.






 


Diário de Nova York 2

 Artistas ricos.  
 “Narciso acha feio o que não é espelho”.      
 Acho que a frase é do Caetano Veloso. Ela para mim significa muito. Talvez pela incapacidade que eu tenho em reconhecer que existem lugares que podem superar em beleza a minha cidade, a minha casa.
 Já o meu irmão que mora em Nova York, e é nascido em São Paulo, não sofre deste mal.
 Pra mim, poucas sensações são tão gostosas quanto à de pousar no aeroporto de Guarulhos. Mesmo que eu nunca tenha visitado Guarulhos.
 O mundo não é feito de países. Ele é feito de cidades e de bairros e de ruas. E claro, de prédios e casas. O tal de arquitetura e urbanismo.
 Eu não posso dizer que amo São Paulo. O que eu gosto muito, é do alternativo da Vila Madalena, dos prédios de Higienópolis, da riqueza da Vila Nova Conceição, da modernidade do Itaim, da sofisticação dos Jardins, da inovação do Baixo Augusta das pessoas da Praça Roosevelt, da calma da Granja Viana, do oriente da Liberdade, do inesperado da Vila Mariana, da Imponência do Morumbi, da casa da sogra no Bonfa (Butantã), do Sesc da Pompéia, de me perder na Lapa, de viajar no Ibirapuera, do céu da  Avenida Paulista e da Praça Buenos Aires. Buenos Aires. Até do nome da Praça eu gosto. Do futurismo da Berrini. E dos bares da Zona Norte, da Zona Leste, dos lagos da Zona Sul, dos nordestinos no centro quatrocentão.  
 Acho também que os lugares têm épocas. Com certeza Nova York foi na primeira metade do século vinte, um lugar extraordinário e teve seu reconhecimento como capital mundial na década de 70. Mas o auge, de novo em minha opinião, o auge foram seus prédios residenciais do final dos anos vinte.
 Os que eu mais admiro e perco a respiração são os de duas torres da Park West. San Remo, Magestic, Bedford, El Dorado e talvez até o Dakota. Este último onde morou John Lennon.
 Se eu fosse filmar uma cena, ou colocar num livro um cenário que definisse Nova York, eu colocaria não um prédio comercial como Empire State ou o Chrysler, mas sim os de duas torres.
 Por mais bonito que possam ser os Arranha Céus refletidos nos rios com suas enormes pontes suspensas, eu ainda fico com os residências da West Park ou Park West.
 Os que conhecem bem a cidade vão me chamar de elitista, já que estes apartamentos, fiquemos só no San Remo, onde viveu e morreu Rita Hayworth. Onde morou Marilyn Monroe, pode chegar a custar 23 milhões de dólares. Mesmo a pessoa tendo a quantia, ainda tem de passar pelo crivo do condomínio. Um bilionário russo, por exemplo, outro dia não passou.
 No San Remo, que Steves Jobs depois de chamar o arquiteto I. M. Pei (Pirâmide do Louvre) para reformar um apartamento, o vendeu para o Bono Vox, da banda U2. O irlandês é vizinho de Paul Simon, de Dustin Hoffman, Steven Spielberg, Steven Martim. E por aí vai. A lista é bem grande.
 Este prédio de linhas fascistas de fazer inveja no Duce, já teve Madona e Sean Pean, candidatos a moradores, recusados.
 Enfim, não precisei saber que tantas celebridades o admiravam, antes de ficar fascinado. E nem sabia que eram tão espetacularmente caros os apartamentos. Como sou ingênuo.
 Mas você quer o que leitor? Isto aqui é Nova York. A maior concentração de Bilionários do Planeta.
 Eu seria muito feliz no Village ou no Brooklyn. Mesmo porque eu gosto de olha-los (os prédios) e não necessariamente de morar neles.
 Parafraseando outro Bilionário: O Paulo Coelho.
 Acho que eu sou como aquele lago, que podia ver o próprio reflexo nos olhos de Narciso. Ou seja, sou só um brasileiro deslumbrado com uma obra prima, que não é europeia, mas nem tão pouco americana. É nova yorquina. Um brasileiro paulistano comum, e não um bilionário russo, nem uma estrela mundial pop.
 Mas com algo em comum com eles. Hoje estamos no mesmo barco, nenhum de nós pode viver lá.
 Podemos vir ao parque, sentar num banco, como estou neste exato momento, olhar pra ele, e escrever esta crônica.
 E ele, o San Remo, num sorriso, parece que ainda o escuto a murmurar como há vinte anos, quando nos conhecemos pela primeira vez:
 “Faria Lima, Praça Buenos Aires, sei... Ei cara saia da minha frente e me deixe ver o Parque”.
 Será que Will Eisner (Avenida Dropsie), concordaria comigo?
 .