Tempos atrás eu e o meu amigo Antonio fomos ver uma peça de uns amigos na Rua 13 de Maio. Um Shakespeare. Depois de termos comprado os ingressos Antonio olhou no relógio e disse:
“Vamos até a rua para eu fumar um cigarro? Faltam ainda dez minutos”.
Estávamos então na calçada quando ouvi um carro brecar e atropelar uma criancinha que atravessava a rua correndo de um bar num lado da rua, para uma padaria do outro lado. Foi exatamente na minha frente.
Era sábado e a rua estava cheia de moradores e turistas. Não lembro do sexo da criancinha. Só lembro dos parentes e amigos. Eles, ou melhor, elas gritavam e choravam e gemiam. Eu não consegui chorar e Antonio tão pouco. Fizemos uma cara de lamentação um pro outro, olhamos o relógio e fomos ver a peça.
Claro que nenhum ator do mundo iria conseguir chegar ao grau trágico e frescor que os parentes da criancinha estavam. Mesmo assim eu gostei de ter visto Shakespeare.
Hoje no parque do Ibirapuera escutei um som, gemidos e uma espécie de choro misturado com latido. Várias pessoas em volta de um cachorro, um Pastor Alemão que segurava um outro pequeno, bem pequeno cachorro pela boca.
O Pastor Alemão ia trucidando o cachorrinho e ninguém conseguia o fazer parar. Éramos uns vinte humanos testemunhando um assassinato. Um cachorro matando outro.
Acho que foi a primeira vez que eu vi alguém matando com a intenção de matar. No caso o alguém era um cachorro.
Virei o olho e as vi. Duas meninas de uns 20 anos. Elas choravam como duas cachoeiras. O corpo, a respiração delas, tudo estava livre para o choro. Nenhum canal estava impedido. Um estilo, uma força, uma naturalidade.
Eu nunca vou saber chorar assim. Nunca. Não sei se não aprendi ou desaprendi.
Homem não chora. Nós temos vergonha de chorar? Não sei. Temos. Temos sim. Homem não chora. É o que elas sempre dizem da gente.
Ver aquelas duas meninas chorando me deu um prazer enorme. Não tenho a mínima idéia do por que.
Não sei se foi a de ver uma humanidade tão forte nas duas?
De ver talvez duas meninas de 20, parecidas com muitas outras meninas de vinte, que já me fizeram sofrer. Só que agora sofrendo elas mesmas?
Alguém aí me ensine a chorar pelo amor de Deus!
Por que depois de presenciar um cachorro ser morto de maneira tão bárbara eu ainda consigo jantar um filé?
De me sentir bem, porque a criança atropelada não era meu parente. Não fui eu quem atropelou.
O cachorro que morreu não era meu. Não era eu.
E me deu uma pena do Pastor Alemão. A carinha dele. Ele não tinha a mínima idéia do que havia cometido. Uma cara meiga.
E o choro das meninas completamente tomadas pela emoção, com nenhuma razão. Será que é assim? O homem só perde a razão para agredir e a mulher só perde a razão quando é testemunha ou vítima de agressão?
Eu nunca vi meninos chorarem daquele jeito. E nunca vou ver. Já vi meninos num conflito entre não posso chorar e preciso chorar. Não posso e preciso. Não posso e preciso.
E quando choramos é escondido de nós mesmos. Que inveja daquelas meninas.
Se cachorro chora, mulher chora, por que eu nunca aprendi? Que inveja daquelas duas meninas. Nasceram com um talento que eu nunca vou ter. Nasceram mulheres.