domingo, 30 de outubro de 2011

De mãos dadas com a morte.

Era um dia cinzento do inverno de 1977. Estavam ela e os soldados todos na pista do aeroporto de Ezeiza próximos a Buenos Aires. Uma mulher havia lhe dado banho. A mulher, não estava mais ali agora. A mesma mulher lhe vestira com roupas quentinhas.

 Ela perguntara pela mãe, pelo pai e pelo irmãozinho. Onde eles estavam? A mulher só disse que seu avo viria do Brasil buscá-la. Um homem segurava sua mãozinha na pista. Ela tinha cinco anos.  Ela não sabia ainda, mas ela se recordaria deste momento todos os dias da sua vida.

 Aquele que segurava a sua mão era Humberto Elbironte. O avião pousou. Um jato particular. Os quinze soldados apontaram as armas para a porta. Dois homens enormes desceram as escadas. Um negro, e outro branco. Eles encaravam os soldados nos olhos e não disseram nenhuma palavra. Provavelmente não falavam espanhol.

 Um homem também enorme desceu a escadinha do avião carregando uma maleta. O homem parecia muito bravo. Um outro, pequeno e magro cumprimentou os soldados e Humberto. O homem grande era seu avo.

 Ele por um momento pensou em puxar a arma ali mesmo e atirar contra todos aqueles soldados. Os dois seguranças sabiam disso, conheciam o patrão. Ninguém piscava. Humberto sabia dessa possibilidade. Mas era muito dinheiro e o pequeno risco valia à pena.

 O avo ao ver a neta desistiu do tiroteio suicida. Odiou vê-la de mãozinha dada com o carrasco da sua filha.

 “Como posso ter certeza de que ela é realmente minha neta?”

 Um soldado então mostrou uma foto da família toda. Martina, a pequena Martina era a única sobrevivente dos quatro.

 Trocaram a maleta pela menina. E no avião a caminho da São Paulo Martina viu a primeira e ultima vez que seu avo chorou. Ainda no céu o grande homem fez a menina prometer que ela nunca mais colocaria os pés naquela terra maldita. Pelo menos enquanto ele estivesse vivo. Não naquela terra que tinha levado a sua única filha.

 Martina teve uma infância abastada. Foi amada pelos parentes brasileiros. Se tornou uma mulher muito bonita. No ano de 2011 percorria uma exposição de arte em São Paulo e viu aquele homem de costas, mas o reconheceu.

 Era Alexandre o seu primeiro beijo, quando ela tinha onze anos. Não quis falar com ele e fingiu que não o viu. Afinal já eram quase trinta anos que a separavam daquele beijo. Talvez fosse uma outra Martina.

 Foi naquela mesma tarde tomar um café próximo dali. Um cansaço bateu e ela pediu a conta e foi para casa. Suas recordações avançavam e se lembrou da primeira vez que esteve na pista de Ezeiza e também da segunda.

 O muro de Berlim já havia caído. Claro era o ano de 1992. Ela tinha vinte anos. Seu avo já morrera há dois anos. Desta vez a pista de Ezeiza estava com o céu azul.

 Um homem da organização já a esperava no desembarque. Ele pegou a sua mala e perguntou se ela queria ir para o hotel antes.

 Ela disse que queria liquidar a missão logo. Eles entraram num carro com motorista. O argentino disse a ela que não se preocupasse porque o motorista também era da organização.

 Depois já com o carro em movimento, os dois no banco de trás o homem mostrou a foto de Humberto Elbironte e seguiram para o bairro de Palermo. Ela se despediu dos dois. A arma carregada já estava na sua bolsa.

 Esperou até anoitecer. Quando viu o velho descer para a padaria como os agentes disseram que ele fazia todos os dias. Ela o abordou numa rua escura. Se identificou apontando a arma para aquele velho. O homem era um argentino elegante. Um homem comum.

 Ele pegou na mão dela. E de repente estavam numa praça. Humberto disse que tinha colocado um rato faminto na vagina da mãe dela. Martina acordou com seu filho de sete anos na sua frente.

 “O que houve mãe por que você está chorando?”



O muro de Berlim já havia caído. Claro era o ano de 1992. Ela tinha vinte anos. Seu avo já morrera há dois anos. Desta vez a pista de Ezeiza estava com o céu azul.

 Um homem da organização já a esperava no desembarque. Ele pegou a sua mala e perguntou se ela queria ir para o hotel antes.

 Ela disse que queria liquidar a missão logo. Ela mal podia se conter vendo a sua terra pela janela do carro. Realmente Buenos Aires era linda. Seu pai era Portenho a mãe Paulistana. Ambos marxistas se amaram, se conheceram em Paris.

 Uma equipe de um documentário filmava tudo enquanto a van seguia para um enorme prédio no centro.

 Um homem a anunciou para uma platéia de universitários. Enquanto ela lavava o rosto na pia do banheiro:

 “Vou chamar agora uma estudante de vinte anos. Ela é a considerada a maior líder etudantil do Brasil. A líder, do que eles lá chamam, de caras pintadas. Eles estão conseguindo derrubar um presidente corrupto no Brasil. E tudo feito na legalidade, na democracia.

 Mas o mais incrível disso tudo, é que esta jovem não nasceu no Brasil. Como vocês devem saber ela é filha de dois desaparecidos políticos da ditadura. Ela é portenha e há quinze anos não pisava em Buenos Aires.”

 Naquele dia a pequena Martina falou para milhares de argentinos. Sentiu orgulho dos seus pais. Sentiu que eles também se orgulhariam dela. Depois a levaram conhecer a capital argentina. O Tango contemporâneo, as livrarias, os teatros as praças. Ela amou tudo aquilo. A Argentina.

 “O que houve mãe? É por causa daquilo que o meu pai falou sobre os meus avôs?”

 “Sim filho. É por causa disso.”

 Naquele dia de 2011, antes de ir à exposição de arte a deputada Martina Esperanza recebera a noticia de que o assassino dos seus pais fora condenado à prisão pela justiça da Argentina. Por crimes cometidos contra a humanidade e a pátria.

 Aquele homem estava preso em seus pensamentos há mais de três décadas. Talvez agora ele ficasse preso em outro lugar e ela livre dele.  

 Talvez agora ela pudesse ir pela terceira vez na vida a Argentina. Levar seu filho conhecer a terra que ela nasceu. Logo ele vai ter onze anos, vai dar o seu primeiro beijo. A vida segue.

 “Vem cá”.

 Ela sorriu pegou seu filho e o puxou pra cima da cama. Enquanto ela fazia cócegas nele perguntou:

 “Quieres conocer la Plata?”