sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

São Francisco e a loteria

Personagens:


Amante

Poeta

Empregada

Marido

Esposa



Cenário: Rua, numa noite de inverno.



(Um homem está aguardando uma mulher casada para um encontro. Ele hora sopra as mãos e tampa as orelhas, hora coloca as mãos no bolso da calça.).



AMANTE- Onde está ela? Que gelo! (Se movimenta de um lado para o outro, para tentar passar o frio.) Marcou comigo às dez horas e já são dez e meia. (Tenta fazer uma ligação no celular.) Inútil esta desligado. (Guarda o celular). Vou-me embora. (Faz o movimento de ir, mas logo para.) Ah, não essa mulher vale a pena. Tem uns peitos, uma bunda e depois o melhor de tudo, é casada. Parece que o marido não dá no coro, então eu entro em ação. (Ri.) Até hoje nunca tive um problema com marido corno, acho que eles finalmente estão ficando mansos com a modernidade. Vivemos uma época de ouro, onde se pode realmente sair com mulheres casadas, o que é ótimo, pois não temos o dever de ligar no dia seguinte nem nos preocupar com os maridos cornos. Ainda mais eu que não posso ver sangue que desmaio. Não nasci para agressividade física, só para o amor. (Um vendedor de poesia se aproxima.).



POETA- Gosta de poesia? Quer ver um trabalho meu...



AMANTE- Não odeio, e dá licença que eu estou esperando alguém... (Vê alguém vindo.) Mas quem é essa louca que vem correndo? (Vendedor de poesia se afasta.) Será que é Pauline? (A empregada de Pauline entra correndo e ofegante mal consegue falar).



EMPREGADA- Salve-se meu senhor! O marido da patroa descobriu tudo e esta vindo para cá, logo aí atrás! (Sem parar passa correndo e sai de cena).



AMANTE- O marido? (Empregada sai de cena, o amante olha em volta.) Para onde eu fujo? (Vendedor de poesia dá de ombros.) E agora o que será de mim? (Corre pelo palco.) Onde eu me escondo? (O marido entra correndo no palco e para, respira, pois esta quase sem fôlego, ele é visivelmente mais forte e agressivo do que o amante).



MARIDO- (Se repondo.) Você? (Olha para o amante que agora disfarça).



AMANTE- Pois não?



MARIDO- Quero falar com você, sobre Pauline. (Amante tenta fugir, mas marido o segura pelo ombro).



AMANTE- Não é nada do que o senhor está imaginando, eu na verdade sou um primo distante de Pauline...



MARIDO- Filho da tia Márcia?



AMANTE- Isso filho da tia Márcia.



MARIDO- Eu detesto a tia Márcia.



AMANTE- Eu sou maquiador...



MARIDO- Eu sou engenheiro civil, e daí? A conversa é outra primo.



AMANTE- Lamento, foi bom te conhecer, eu tenho uma cliente agora...



MARIDO- Eu não estou aqui para te agredir, eu sou um corno manso.



AMANTE- Como é que é?



MARIDO- É isso que você ouviu, eu sou um corno manso.



AMANTE- (Mais confiante e menos medroso.) Sei e em que eu posso ajudá-lo?



MARIDO- (Tira umas contas do bolso.) Está aqui oh! (Começa a dar as contas ao amante). Condomínio, seguro saúde, (Amante vai pegando as contas sem entender), cartão de crédito, celular...



AMANTE- Setecentos reais de celular?



MARIDO- Por que achou muito? Mês passado foram novecentos.



AMANTE- Novecentos?



MARIDO- E mês que vem vai ser mais, depois do feriado que vocês vão passar em Buenos Aires.



AMANTE- Mas o que significa tudo isso? De quem é esse celular? Essas contas?



MARIDO- Como de quem? De Pauline, quem mais? Quer dizer agora são suas e dela.



AMANTE- Como assim?



MARIDO- Eu estou caindo fora.



AMANTE- Como assim?



MARIDO- Fique tranqüilo, foi algo que eu refleti muito, não tem nada a ver com vocês. É uma decisão, claro que você vem em boa hora. Facilita, aí nessas contas. (Continua a tirar contas do bolso.) Clube, prestações do carro, (Para e olha o boleto bancário), puta carro caro! To vai pegando.



AMANTE- Mas... Nós só saímos uma vez. Você pode continuar com ela, eu não vou querer essas responsabilidades.



MARIDO- Tente entender, eu e Pauline não combinamos. Ela não vai ao cinema comigo.



AMANTE- Só por causa disso? Vá sozinho.



MARIDO- Mas é essa a idéia. Eu queria tanto ter visto “Tropa de elite 2”.



AMANTE- Eu assisti, gostei.



MARIDO- (Agora sem ouvir, só desabafando.) A exposição do Nuno Ramos que ela não me levou, o show do Geraldo Azevedo. Sem falar em outras coisas.



AMANTE- Ah é. Quais outras coisas?



MARIDO- A verdade é que Pauline é uma pessoa muito materialista. Já eu dou valor a outras coisas, jantares românticos... (Para o amante.) Você cozinha? Gosta de literatura?



AMANTE- Bem... Eu li um livro uma vez, não lembro o nome agora e faço bons sanduíches.



MARIDO- Sanduíches?



AMANTE- Saladinhas vez ou outra.



MARIDO- Sabe, eu tenho um sonho. Você pode até achar bobagem, como Pauline acha também.



AMANTE- E o que é?



MARIDO- (Com água nos olhos.) Eu gostaria de... Sabe aquele sonho de... Como eu posso explicar?



AMANTE- Não se acanhe, pode dizer.



MARIDO- Casar na Igreja. Eu gostaria de casar na igreja e de ter filhos sim senhor. (Entra o vendedor de poesia.)



POETA- Carlos?



MARIDO- Olha se não é o Guilherme.



POETA- (Dando um abraço no marido.) Carlos! Sumiu lá do Sarau, todo mundo ficou sem seu contato.



MARIDO- É que eu casei. Mas agora vou voltar... Descasar.



POETA- Ah que ótimo, anda escrevendo? (Entra Pauline, ela é só sorrisos logo atrás vem a empregada também só sorrisos).



PAULINE- Carlos, eu preciso te dizer algo.



MARIDO- Oh Pauline este é meu amigo Gui do Sarau de poesia.



PAULINE- (Sem ouvir). Nossa vida mudou Carlos, hoje eu descobri...



MARIDO- (Pega a mão do amante e junta com a dá mulher.) Não precisa me explicar nada já me entendi com o seu amante, ele até já assumiu as responsabilidades.



AMANTE- (Tirando sua mão da de Pauline.) Não é bem assim.



MARIDO- É assim sim. (Puxando o poeta.) Vamos Guilherme tomar uma cerveja.



PAULINE- Mas...



MARIDO- (Para todos.) Agora eu sou como São Francisco de Assis, amo o sol, a natureza e a poesia, as cabras... Sou livre... (Vai saindo.)



EMPREGADA- A patroa ganhou na loteria!



MARIDO- (Imediatamente volta.) Como é que é essa estória, Pauline?



PAULINE- É isso mesmo, ganhei sozinha o primeiro prêmio, sou uma milionária! (Pausa, todos se olham).



MARIDO- Vamos já para casa! (Vai puxá-la e o amante a segura).



AMANTE- Vai rodar o mundo, Alberto Caeiro, que esta agora é minha. (Cada um puxa um braço).



MARIDO- Pauline vamos embora! (A luz vai descendo).



PAULINE- Vocês estão me machucando.



MARIDO- É minha.



AMANTE- Você me deu. Junto com as contas. (Pano.)

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