quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A Trupe.


A TRUPE.




Como eu venho ensaiando uma peça de teatro. Tive o desejo de postar este texto na integra. É um conto sobre a história de uma Trupe de teatro. Ou bem mais que isso. Abrem-se as cortinas:




A casa da atriz.


“Eu quero juntar a Trupe de novo”.
 Foi o que Mariana me dissera pelo celular. Ela com seus trinta anos era uma mulher sensual, peitos grandes, bunda maravilhosa, uma das pessoas mais incríveis que eu conheço. Sofisticada, culta, transitava tanto pelo drama como pela comédia.
 Mas tinha lamentavelmente um defeito, o mesmo gosto meu para meninas. Isso mesmo leitor, Mariana é gay ou ainda uma linda Sapatinha.
 A casa dela é a casa que eu gostaria de ter. Numa vilazinha. Cheia de fotos de teatro penduradas na parede. Bonecos, fantoches, pôsteres e figurinos. Lá estava a foto de uma outra menina que há dez anos eu só via na televisão e nunca mais conversara.
 “Dez anos depois e você quer juntar este bando de malucos? Para fazer o que?”  Perguntei a Mariana. 
 “Para montar um texto seu Leo.”
 “Ah, mas não era Leo Martins Pena pra cá, Leo Suassuna pra lá... E de repente juntar pessoas que brigaram faz uma década para montar um texto meu? Uma Farsa?”
 Éramos a “Trupe do Sol”, talvez o período mais feliz da minha vida. Nunca chegamos a ter um reconhecimento, nem de público e nem de crítica. Mas nós nos amávamos. Na verdade eu amava Beatriz, Mariana amava Beatriz, Duda amava Beatriz, Rodolfo amava Beatriz, Fred amava Napoleão e Napoleão, Fred. E Beatriz amava...
 “Ela te amava Leo.”
 “Se me amava como é que se casou com o Rodolfo?”
 “O Rodolfo é muito mais gostoso.” Provocou Mariana.
 “E como uma Sapinha, você, pode saber que tipo de homem é gostoso ou não?”
 “Sabe que você às vezes pega pesado?”.
 “Sei. Mas comparado a você eu sou um doce.”
 O fato é que o grupo terminara. Duda nosso diretor estava num sanatório. Fred agora fazia musicais, Napoleão embora não tivesse muito talento para Stand-Up havia cismado que era um humorista. Já Bia e Rodolfo haviam se casado e moravam no Rio onde trabalhavam na televisão.
 “E você está fazendo o que agora?”
 “Eu tenho um blog.” Eu disse.
 “Para quem dizia que iria ser um grande dramaturgo.”
 “Eu nunca disse isso.”
 “Uff! Um blog”. E deu de ombros. “Temos que começar tirando Duda do hospício.”
  Eu já ia indo embora, mas parei. Minha raiva não era da Mariana. Como ter raiva de uma mulher talentosa, linda e que ainda acreditava que eu era um “grande” dramaturgo. Minha ira era ela ser homossexual. Era Bia ter casado com Rodolfo e não comigo. Era Bia ser famosa. Era... De nunca mais ter sido feliz como eu fui com eles, com a Trupe. No fundo até o Rodolfo eu amei. Amei todos eles, Napoleão, Fred, Duda.
 “Mari, um grupo precisa de uma fé para existir. A nossa era de sermos profissionais. Tivemos começo, meio e fim.”
 “A nossa fé era a de sermos felizes e fomos”.
 Eu ainda tomei mais uma cerveja. Me deu uma vontade de dormir lá na casa da Mari. Aquela mulher linda, inteligente, sensível... Mas o que ela precisava de mim? Do que? Fora indicada ao premio Shell. Estava com dinheiro. Tinha talento e por último eu não era mulher, logo...
 “Você merece Leo. Chegou a sua hora de ser reconhecido”.
 “Sem essa Mari. Agradeço, mas se eu continuar aqui... Nos falamos. Vamos ao cinema essa semana.”
 Levantei. Deixei o copo de cerveja na mesa e comecei ir em direção da porta.
 “Eu estou morrendo Leo.”
 Voltei e virei o corpo para vê-la. Seu olhar era sincero. Demos um abraço. E ali prometi que não contaria isso para ninguém. Reuniríamos a Trupe sim. Dez anos depois, mas eles não precisavam saber da doença da Mari. Ou seja, seria bem mais difícil. No fundo a caçula, Mariana,  sempre fora a mais amada e a mais talentosa.
 A segunda jornada seria reunir todos. Iríamos atrás de um por um a começar por Duda, claro o diretor, no hospício.
 “Você deveria pedir um texto para Maria Adelaide Amaral.” Eu disse. Ela sorriu e respondeu.
 “Leo você é bom, acredite.”
 Bebemos ainda uma vodka e fui para o quarto de hospede na casa da atriz. O dia seguinte seria puxado.  






A hegemonia do diretor.



 Não foi difícil achar o enorme instituto Bairral em Itapira. Com vários pavilhões, me lembrava muito uma universidade com seus campos e árvores. Ou ainda uma fazenda. Deu-me vontade de passar férias ali. Mas eu e Mari tínhamos uma missão, achar Duda e levar ele embora dali.
 Os artistas de teatro quando estão trabalhando estão bem. É o teatro que dá disciplina e não a tira, como muitos pensam. E Duda por mais doido que seja era um diretor invisível. Isso quer dizer que embora ele tivesse surtos e delírios, ele não estragaria um texto meu.
 Seu estilo nunca foi o de atravessar um texto, ou seja, a obra é que prevalecia e não o diretor com suas viagens. E ele era um excelente diretor de atores, era o que eu precisava e queria.
 A família dele permitiu que o visitássemos.
 “Qual é o plano?” Perguntei para Mari.
 “O escritor criativo é você.”
 Não havia plano. Chegaríamos o colocaríamos no carro e iríamos embora. Sem o truque da loteria, sem fingirmos que éramos psiquiatras nem nada. Vimos Duda na piscina, no pavilhão dos jovens excêntricos com propensão para o uso de entorpecentes.  
 Quando nos reconheceu abriu um sorriso e gritou:
 “Jesus e Nossa Senhora! Vieram me visitar!” Mal estacionamos e perguntamos para ele:
 “Quer ir embora?”
 “Quero.”
 Entrou no porta-malas. Passamos pela guarita, devolvemos os crachás, andamos alguns quilômetros. O tiramos do porta-malas e agora estamos aqui na estrada. Indo buscar Napoleão em um show de Stand-Up em Campinas.
 “Vocês já pensaram em algum teatro?” Quis saber Duda.
 Naquela frase eu senti que éramos de novo a Trupe. Lembrei de quando morávamos juntos e nos três anos em que o grupo existiu.
 O Show de Stand-up de Napoleão já havia começado. Nós três quase não conseguimos lugar na platéia. Eram constrangedoras as piadas de Napoleão não eram ruins eram péssimas. Eu sempre achei ele um grande comediante e definitivamente aquilo não era sua praia, mas não é o que ele achava.
 “Não posso sem mais nem menos voltar a fazer teatro, tenho inúmeros shows marcados pelo Brasil. Na minha agenda não cabe, pelo menos agora.”
 “Uma leitura pelo menos”. Tentei ainda como último recurso.
 “Não.” Ele respondeu, virou-se e começou a tirar a maquiagem no espelho do camarim. Sim Napoleão fazia Stand-up maquiado com uma leve base.
 “A Bia vai ficar tão chateada.” Arriscou Mari.
 “A Bia aceitou? Ela vai montar um espetáculo com vocês?”
 Quando Napoleão soube que Bia, uma celebridade televisiva tinha aceitado, mudou de idéia.
 “Uma leitura acho que não tem problema. O personagem é grande, né?”
 “É a sua cara. Você vai adorar.” Disse Duda.
 “E você Duda, por onde andava? Anos que não te vejo, nem sei dos seus trabalhos.”
 “Nova York, meu amigo. Montei o espetáculo “Instituto Bairral” por lá. Um sucesso.”
 “Sei. E quando vai ser esta leitura.”
“Não se preocupe, estou dando um último ajuste no texto. Mas provavelmente esta semana. Te ligamos.” Eu disse.
 “Mas com antecedência. Minha agenda é cheia. Conforme for eu mando um substituto fazer minhas participações em shows.”
 Despedimos-nos e seguimos para São Paulo. Bem agora éramos quatro.
 Mari na direção ainda disse:
 “Alguém ai pode entrar no decolar ponto.com? Acho que hoje é um bom dia para irmos jantar no Rio.”



Rio.


 Duda nos confessou no vôo para o Rio, ainda no mesmo dia ou noite agora, que estava muito feliz com o convite para ele voltar a dirigir.
 “Eu amo ser diretor”. Ele disse para uma comissária de bordo.
 Diferente do que eu imagino que Bia deva causar num vôo, ou num aeroporto quando surge uma atriz global, Mari passa totalmente despercebida. Eu fico pensando mal eles sabem essas pessoas, que estão ao lado de uma das maiores atrizes do Brasil.
 Pousamos às 22 horas. Seguimos de táxi para o nosso hotel em Copacabana, o mesmo hotel que a Trupe ficava quando trazia os espetáculos para o Rio. Tive noites de amor fantásticas com Bia. Sim eu namorei a Bia durante dois anos até ela me trocar por um outro. Rodolfo.
 Fred ou Frederica, como nós o chamamos, sempre foi o melhor amigo ou amiga de Bia. Duda queria montar uma comédia, alias, Duda só monta comédias. Conhecemos-nos no Célia Helena, uma escola de teatro.
 Eu trouxe Napoleão, baixinho e gordinho eu sempre acreditei nele, até demais. Um dia Napoleão vai ter a sua chance. Ele já namorava Fred e tanto eu como Duda já pagávamos um pau para a famosa Beatriz. Na época famosa na Praça Roosevelt e hoje nacionalmente conhecida. Alias, nunca mais foi vista na Roosevelt.
 Mari foi um achado. Foi a Bia que levou ela um dia num ensaio do grupo:
 “Duda testa essa menina que eu trouxe! Ela parece ser ótima.” Pediu a Bia.
E era. A melhor. Um dia apareceu também o Rodolfo. No começo foi bom, ele era divertido, jovem e ótimo ator. Daquele tipo hétero, artista sensível, meio bicho grilo. Não é lá muito culto. Talvez por isso ideal para a televisão. Ele, junto com a Bia, deram muito certo em cena.
 Depois de um tempo a Bia terminou comigo. Eu não podia imaginar que fosse por causa do Rodolfo. Até hoje eu não entendo. Mas ele muito mais do que eu, não tinha nada de tímido e se misturava com grandes atores e diretores e levava Bia junto em bares. Conheceram jornalistas, produtores de TV...
 Já eu e Duda só pensávamos no grupo, na Trupe do Sol e não nos empenhávamos em nos tornar conhecidos. Hoje eu vejo que foi um grande erro.
 Mari era vista em cena e sempre choviam convites. Acho que foi Rodolfo que levou a Bia de verdade para a TV. No fundo eu acho que ela sempre gostou de teatro. Mas vai ver é tudo a mesma coisa, eu não sei. Eu nunca fiz TV. Frederica fazia os figurinos. Eu escrevia e também atuava. A luz, o cenário, a direção, tudo o Duda. Mari além de atriz produzia junto com Napoleão. E assim foram os três anos mais felizes da minha vida. Mesmo depois da Bia terminar comigo, eu tinha a minha melhor amiga: A Mari. Passamos a ser grudados. Cantávamos meninas, as mesmas, íamos às baladas e bebíamos demais. E principalmente, Mari nunca dizia não a uma estréia ou peça. Éramos a dupla. Mas Mari pertence ao mundo. Muitos diretores e diretoras se apaixonaram pelo seu talento. E ela se foi.
 “Vou deixar vocês jantarem sozinhos. Tem muito tempo que eu não pego uma praia, vou dar um mergulho.”
 Foi inútil dizermos ao Duda que estava de noite. E como ele precisava daquela liberdade, o deixamos ir. Prometeu que não se perderia e ele sabia muito bem voltar para o hotel.
 Jantamos em Ipanema, num lugar da moda e bem agradável. Eu e Mari. Resolvemos que só procuraríamos Bia e Rodolfo no dia seguinte. E voltamos para o hotel, para o meu antigo quarto com Beatriz.
 “Você não prefere dormir com o Duda e eu durmo sozinha?”
  Eu disse que não.
 “Quando foi que você descobriu a doença?”
 “Há uns meses. Eu tinha muita dor de cabeça, confusão, um cheiro de queimado... Enfim o médico suspeitou dos sintomas. É um tumor.”
 “E para quando é?”
 “Você pode acordar com uma morta do seu lado.”
 “Não fale assim Mari.”
 “Você quem perguntou. Pode ser a qualquer momento.”
 “Sabia que se você gostasse de homem, eu te chamaria para sair?”
 “Eu gosto de homens Leo. Claro que desde que eles sejam sensíveis, cultos e sem pêlos.” Ela riu.
 Era muito bom dividir um quarto com Mari. Ela fora apaixonada por Bia, desde de sempre e me viu namorar Bia durante dois anos, nunca teve a menor chance com ela e nem por isso reclamava. Com Duda era diferente. Nem sei se ele realmente foi assim tão apaixonado, e tinha a sorte de ser a única pessoa no mundo que Bia tinha medo e muito respeito. Ela dizia sempre: “Sim diretor”. Pra tudo. Os diretores têm esse poder sobre as atrizes. Já os autores...
 “Mari eu tenho que te confessar você tem um corpo!”
 “Meu Deus! Apague a luz, que obsessão”.
 “Quem sabe não é a sua última noite...”
 “Leo, você às vezes é tão babaca, mas tão babaca... Como você pode brincar com algo assim? E depois se acreditasse realmente que era a minha última noite, eu preferiria muito mais aquela aeromoça que o Duda ficou paquerando do que você! Vamos combinar, né?”
 “É realmente a aeromoça... Mas é a Hostess do restaurante?”
 “Boa noite Leo.”
 Dormir ali em Copacabana ao lado da Mari e foi tão gostoso.
 “Mari obrigado.” Ela ainda de costas para mim na cama.
 “Leo durma. Porque amanhã nós vamos encontrar com ela. E quem sabe como vai ser?”
 “Boa noite Mari.” 




 Um por todos e todos por um.


 Quem abriu o elegante apartamento no bairro do Jardim Botânico, foi ninguém menos do que Frederica. Ele estava mais magro do que antigamente. Convidou-nos para entrar e eu Mari com não entendíamos nada, ainda mais com o sumiço do Duda que não apareceu de manhã. De manhã, entenda-se ao meio dia, que foi o horário em que acordamos.
 “O que você está fazendo na casa da Bia?” Eu quis saber.
 “Eu moro aqui.” Frederica respondeu.
 Explicou-nos que quando estava em cartaz na cidade, e ele estava num musical, um grande musical como ele disse se hospedava na casa da amiga Bia.
 “E cadê o Rodolfo e a Bia?” Perguntou Mari.
 Fred fez uma cara de espanto. “Então vocês não sabem?”
 Não. Não sabíamos que Bia e Rodolfo já não estavam juntos há um ano. Frederica nos contou que Rodolfo conhecera uma menina, uma atriz de 19 anos e se apaixonara. Bia por sua vez havia conhecido um publicitário quarentão. A separação foi numa boa porque nenhum dos dois, mas se aturavam.
 Depois de separados voltaram a sair junto e resolveram sair de casal. Bia com o publicitário e Rodolfo com a atriz adolescente. Dois meses depois, Bia pegou o publicitário quarentão com a menina adolescente.
 “A mesma?” Mari colocou a mão na boca.
 “A mesma.” Contou Frederica que agora estava satisfeita com tanta fofoca.
 Minutos depois Bia chegou. Entrou na sala nos viu e parou. Ficamos os três nos olhando. Até que Frederica cortou o silencio. Vieram almoçar conosco. Eu já mandei a Marlene ir ao supermercado.
 Foi uma choradeira. Dez anos sem nos ver e sem conversar.
 “Por que ficamos tanto tempo sem nos falar?” Quis saber Bia. Ninguém sabia. Ninguém se lembrava. Napoleão brigou com Fred, eu com Bia, Duda brigou com o Rodolfo, e Mari?  Mari não brigou com ninguém.
 Contamos a história toda aos dois. Que queríamos juntar a Trupe, fazer teatro novamente. Que nunca esquecemos o quanto, nós fomos felizes.
 “Eu te assistir na sua última peça Mari.” Disse Bia.
 “Eu sei Bia. Quando uma atriz da novela das oito vai ao teatro todos a vêem, mesmo que ela fuja sem ir ao camarim falar comigo depois.”
 “Eu amei sua peça. Eu estou adorando que vocês estejam aqui. Mas eu não posso aceitar este convite. E mesmo porque vocês dois estão loucos. Por que voltar uma coisa que já aconteceu? Ok nós fomos felizes, mas temos de seguir em frente. Eu já não sou aquela Bia. A Frederica também já não é mais a Frederica daquela época. Mesmo que vocês dois estejam lindos e o Leo embora com uns fios grisalhos no cabelo, mesmo assim não mudou quase nada. Mas nós envelhecemos. Tudo tem um começo, um meio e um fim. Foi o Leo que me ensinou isso. Lembra querido? Meu Deus! Dez anos sem nos falar!”
 “Bia, nós poderíamos ensaiar aqui no Rio para não te atrapalhar na Televisão.” Tentou Mari.
 “Mari eu não faço mais teatro. E eu estou feliz. Depois quem iria me dirigir aquele maluco do Duda, que até hoje é louco e socialista?”
 A empregada entra na sala e diz:
 “Dona Beatriz o porteiro disse que tem um homem lá embaixo procurando à senhora, diz que parece um mendigo e o nome dele é Carl Marx. Deve ser do teatro também, né?”
 “Falando nele.” Eu disse.
 “Mande subir.”
 Duda salvou o plano. Quando Bia o viu entrar, tremeu toda. Dizem que a primeira transa a gente nunca esquece e nem o primeiro diretor.
 “Sinto lhe dizer Beatriz que a sua interpretação caiu muito pelo que eu ando vendo na televisão.”
 “E você tem me assistido Eduardo?”
 “Que jeito se a TV do instituto Bairral não sai da Globo.”
 “Instituto o que?” Quis saber Frederica e depois continuou. “Desculpe-me Mari, o problema ainda é outro mesmo se aceitássemos...” De repente parou. Começou a chorar. “Eu quero Bia! Eu quero Bia! Eu amo essa gente cadê o texto?”
 Bia prometeu que ia pensar e a noite nos responderia. Despedimos-nos e seguimos para a Rede Globo. Faltava um ainda.
 “Eu acho que ela nunca deixou de te amar.” Me disse Mari.
 “Mas eu acho que eu deixei.” Respondi.
 "Me engana que eu gosto." 
 Não sei se era verdade o que eu dizia. Nós nunca sabemos. A voz de Bia me atravessou. O olhar era o mesmo e parecia que ela só melhorara com o tempo.
 No caminho me deu saudades de Rodolfo. Enfim ele não era mais um concorrente. E eu tinha um personagem para ele.
 “Afinal aonde você se meteu Duda?” Mari perguntou.
 “Eu fui rezar. Vocês podem não estar levando isto a sério, mas eu sou o Diretor desta Trupe eu sou o responsável. E eu não vou desaparecer. Afinal já pensaram em que teatro?”
 E o táxi chegou à rede Globo. Em 36 anos de vida assistindo a Globo eu nunca estivera lá pessoalmente. E acho que tanto Duda quanto Mari também não.
 "É aqui?"
 "Deve ser." 
 "Então vamos".
 E entramos.  



 Lapa.



 Rodolfo foi o mais fácil. Ele já nos esperava, Bia ligou avisando. O lugar parecia um misto de shopping center com galpão industrial. Ele estava numa mesa na lanchonete, com uma mulher, mais para menina. Era bonitinha e alternativa.
 Levantou-se e veio correndo nos abraçar. Dizia alto para a menina:
 “Aprendi tudo o que eu sei com esses caras”.
 Rapidamente nos disse que estava tudo resolvido que ele iria produzir o espetáculo, que já tinha o “Teatro do Lado”, um novo lugar que trabalhava com montagens nem tão offs e nem tão comerciais. Um meio termo entre qualidade e público. Eu já conhecia e adorei a idéia de estrearmos no Rio.
 Enquanto Rodolfo falava comigo e Duda, Mari se entretinha com a nova amiga.
 “E afinal qual é a condição?” Perguntei.
 “Que ela participe.” Rodolfo apontou a menina que parou de falar com Mari e nos olhou.
 “Não tem papel eu disse. E não vou mudar a peça.”
 “Ela não é atriz.”
 “Então... Duda você quer uma assistente?”
 “Eu sou cenógrafa aqui no Rio eu já fiz muita coisa boa.”
 "Cenógrafa?" 
 Mari foi rápida:
 “Ok fechado.”
 Tudo começou a ir numa velocidade muito mais rápida do que eu e Mari imaginávamos. Em 48 horas estava tudo acontecendo. Frederica foi buscar Napoleão no aeroporto. O humorista de satand-up disse que tinha tirado férias de humor solo.
 Rodolfo disse que eram só mais duas semanas de gravação, mesmo assim havia possibilidade de horários a noite.
 Fomos jantar na Lapa, todos nós reunidos. Os sete. A Trupe do Sol. Dez anos depois juntos novamente. Foi uma alegria. Depois ainda saímos para um show de samba.
 Não lembro como aconteceu, Bia dançando na minha frente e de repente o beijo. Um beijo de dez anos de espera. De onze na verdade. Fugimos de todos e fomos para um hotel ali na Lapa mesmo. 
 Bia sem roupa ficara até mais bonita com a idade. Sua beleza clássica a deixara extraordinariamente perfeita. Foi lindo.
 No dia seguinte Duda colocou todos para se mexer. E andávamos por um espaço que Rodolfo tinha providenciado. Era nosso primeiro ensaio. Duda antes da leitura queria que nos mexêssemos, afinal como ele dizia, um texto deve servir e não servido.
 Duda era um paradoxo, maluco e desorganizado por fora era um metódico perfeccionista por dentro.
 Andávamos pelo espaço ouvindo uma música e nos olhando, todos extremamente alegres. Foi quando eu passei correndo por Mari e pude ver seus olhos irem para cima e em seguida o desmaio.
 Todos ficaram perplexos, pois só eu sabia do que se tratava. Corri para pegá-la ao mesmo tempo em que Bia pedia:
 “Alguém chame uma ambulância.”
 “Não há tempo, vamos com o seu carro.” Eu disse, já com Mari nos meus braços. 



A travessia



  Rodolfo pegou a direção enquanto eu e Bia entramos carregando Mari para dentro do Jipe. Rodolfo acelerou e ultrapassou vários carros.
 Na emergência do hospital eu passei o telefone do médioco de Mari em São Paulo. Nãotardou para os outros chegarem e todos nós, os seis mais a nova cenógrafa, Ale, ficamos esperando novidades dos exames.
 O médico apareceu e nos tranqüilizou.
 “Apesar do tumor, esta jovem tem uma genética esplendida. Não há nada de errado com ela. Falei com o médico em São Paulo, o neurologista. Recomendo um dia de repouso e que ela reinicie suas atividades em seguida.”
 Não foi fácil explicar aos outros sobre a gravidade de Mari. Eu mesmo sabia daquilo há pouco. Foi uma choradeira. Até que Frederica quebrou aquilo com a pergunta:
 “Será que ela consegue fazer a travessia?”.
 Todos nos olhamos. Era óbvio que Ale a cenógrafa, não sabia do que estávamos falando. Afinal era um segredo nosso.
 Talvez você leitor me ache meio desequilibrado. Mas nós da Trupe do Sol somos mesmo. Não é só o Duda não. Certa vez um grupo de pessoas nos procurou. Eram três: Um antigo crítico de teatro paulistano, um jovem estudante e teórico de teatro e um homem esotérico, místico... Eles nos informaram de que nós tínhamos uma ligação espiritual com um antigo grupo francês de teatro do século 18, chamado a Trupe de Azul.
 Claro que convenceram Duda, Bia, Mari, Napoleão rapidamente, já eu e Rodolfo e Frederica demoramos um pouco. Aliás, eu só me convenci quando entrei no teatro em Tiradentes.
 Enfim até então era um segredo. Já com o espetáculo pronto seguíamos para um teatro secreto escondido atrás de uma fonte em Tiradentes, ambos do século 18. E no palco nos apresentávamos para uma platéia francesa, do século também 18. Loucura? Também acho, mas é verdade.
 Nesse instante no Hospital ocorreu à mesma pergunta a todos. Mas Rodolfo foi o primeiro a dizê-lo:
 “Será que isso que a Mari está, tem algo a ver com a Travessia?”
 E tinha. Mas naquele momento ninguém sabia de nada. E ainda não havíamos entrando em contato com aquele antigo grupo de mestres teóricos do teatro.
 Antes de alguém responder meu celular tocou.
 “Leo quem fala é Matheus. Quanto tempo querido. Já reservei o hotel para vocês em Tiradentes. Diga a todos que está tudo bem. Eu torno a ligar depois.”
 Matheus já não era um jovem e sim um homem. Naquele momento entendemos que a doença de Mari tinha sim um propósito ou talvez uma cura. Todos estavam naquele misto de medo e desejo, quando Duda ordenou:
 “Alguém fica com a Mari. O resto cama. Amanhã começamos os exercícios na praia. Quero todos em forma.”
 “Eu fico” Eu disse.  
 Neste momento inúmeros fotógrafos invadiram a sala de espera e começaram a fotografar Rodolfo e Bia. A informação tinha vazado e a notícia de tanto o casal divorciado estar num projeto juntos novamente,  como também a de trazerem uma atriz ao pronto socorro era notícia das grandes para os tablóides.
 Bia teve ao mesmo tempo vergonha e orgulho, por eu ver que ela era agora uma pessoa pública importante. O constrangimento foi notar que aquilo desequilibrava o grupo. Mas eu dei uma piscadinha para ela e acho que ela entendeu o: “Vai em frente, é bom para o projeto este marketing”.
 Deixei-os lá respondendo as perguntas dos jornalistas e entrei para ver a mulher de genética fenomenal e talento mais fenomenal ainda. Aquela atriz Mariana, que talvez estivesse apaixonado.







 Trianglinho francês.



 De manhã observava Mari tomando café, enquanto eu via as notícias do nosso novo projeto em vários sites e blogs.
 “Demos à partida!” Eu disse.  
 Mari estava mais interessada na minha noite com Bia do que nas notícias. Eu falei que tinha sido tudo muito bom. Incrível eu gostar de uma mulher da minha idade, geralmente eu gosto das mais jovens, mas com Bia era diferente, parecia que ela ia ficando melhor, cada vez melhor.
 “Mas me diga uma coisa Mari quando foi que você aprendeu francês?”
 “Eu não aprendi, eu não falo uma única palavra de francês, mona mour.”
 “Acontece que ontem você falou frases e frases em francês, enquanto dormia.”
 “Leo que obsessão, já vai falar em Tiradentes de novo!”
 “O Matheus ligou ontem. Ele já sabe de tudo.”
 Matheus há uns dez anos está escrevendo um livro sobre a Trupe do Sol. Junto com a nossa pequena história ele faz um panorama ou ainda uma comparação com a Trupe de Azul do século 18. 
 Sim ambas começaram o seu repertório com Molière. Ambas as Trupes ficaram uma década com os seus membros separados e ambas voltaram.
 Com a diferença que a Trupe de Azul é talvez a companhia de teatro mais conhecida da Europa durante todo o século 18.  Ou seja, uma delícia para um pesquisador e uma total falta de significado para qualquer leigo ou mesmo não leigo. Acontece que sempre há um.... Porém. Existe nisso tudo uma linda história de amor na Trupe de Azul.
 Vou resumir esta história, um jovem aristocrata, se envolveu com uma mulher casada em Paris e teve de fugir. Acontece que o marido ficou tão irado com o próprio corno, que perseguiu o causador, Jean Baptiste, mesmo pela província,
 Numa Vila quase prestes a ser capturado pela polícia e pelo marido da amante, ele conhece uma atriz. Armande Bejart. E é Armande que leva Jean Baptiste para a Trupe de Azul.
 Ele teve de se transformar num ator para salvar a própria vida. E tomou tamanho gosto pela atividade que ainda passou a ser diretor e autor da trupe de Azul. Casou com Armande e teve três filhos com ela. Mas certa vez descobre que seu antigo inimigo havia morrido e ele retorna para Paris em busca de sua antiga amante Violette. Abandona a Trupe e fica dez anos sem ver Armande.
 Verdade é que quando a Trupe retorna Jean Baptiste, segundo as pesquisas de Matheus, já não sabia se amava Armande ou Violette.
 No dia seguinte Duda colocou todos para correr no calçadão de Ipanema. Napoleão foi o que teve mais dificuldade, estava já bem gordo. Rodolfo disparou na frente. Muita água de coco depois e a noite nós começamos a leitura do texto.
 Os ensaios foram aumentando. Começamos a levantar as cenas. Passaram-se dias, depois semanas.
 Tínhamos alugado um apartamento no Flamengo, metade do elenco ficava lá e a outra metade na casa da Bia. Mari logo se tornou muito próxima de Ale a cenógrafa.
 “Leo acho que estou me interessando de verdade por ela.”
 “Como assim e o Rodolfo?”
 Aí foi Frederica quem respondeu: “Será que você é o único que não sabe que o Rodolfo está é com o irmão dela?”
 Acho que eu era o único sim. O Rodlfo? Eu pensei. Achava que o Rodolfo era hetero.
 “E tem hetero no teatro Leo?” Todos perguntaram. E já que estávamos numa mesa. Todos felizes, os sete. Foi Duda quem disse depois do almoço na casa da Bia.
 “Falta uma criança nesta família.” Todos permaneceram e silencio concordando com a cabeça.
 “Por pouco tempo Eduardo, eu estou grávida.” Bia disse isso olhou para os outros e começou a tirar os pratos.
 Todos deduziram que se Bia estava grávida, o pai era eu. Levantaram-se e metade dava os parabéns para ela e metade para mim. Eu pai? Me apavorei.
 Mas daí eu pensei, é da Bia, a mulher que eu amo. Mas quando Mari veio me abraçar, eu de novo tive dúvidas. Mari estava maravilhosa este dia.
 Meu conflito era grande. Ou começou a ficar. Tempos depois, Matheus, como eu era talvez o mais interessado no seu trabalho, me revelou novas descobertas da sua estadia na França.
 Tanto Armande como Jean Baptiste eram apaixonados por Violette. E Viollete também era atriz. O famoso triangulo. Ou como Sartre chamava: “Entre quatro paredes”.
 Será que é filho ou filha?  Foi o que eu pensei enquanto ria de felicidade. Porque eu estava com as pessoas que eu mais gostava no mundo. Fazendo o que eu mais amo na Terra. Teatro. 


Comédia ou drama?


 “Vocês estavam quase lá.”
 Foi o que Matheus disse enquanto tomávamos chopes, nós dois no Bar Balcão.
 Duda nos havia dado dois dias de folga. O espetáculo estava indo muito bem. É uma delicia para o autor quando o que ele imaginou começa a tomar forma. Será que um arquiteto sente o mesmo?
 Resolvi aproveitar e dar um pulo em São Paulo.  Matheus estava com uns trinta e poucos anos. Agora além de professor, teórico e pesquisador de teatro, ele também escrevia para vários lugares. Jornais e revistas.
 “Leo, vocês formaram um grupo no qual ninguém era a estrela. Foram jovens que se juntaram aleatoriamente. De repente começam a trabalhar, são apaixonados incondicionalmente por teatro, pela vida e por vocês mesmos. E então, com a mão na maçaneta, só precisavam girar e abrir a porta, mas ao contrário, desistem. 
 E ficam separados por dez anos. Cada um segue um caminho. Bem da verdade. Mari decola a carreira, Bia e Rodolfo ficam ricos e famosos, Frederico se vira muito bem em musicais. Napoleão trabalha muito, mas só faz porcaria. Você e Duda ainda tentam outro elenco, e é constrangedor de ruim. Por fim um dia resolvem voltar. Dez anos depois. Por incrível que pareça ainda são jovens, por incrível que pareça eu também ainda sou jovem e acredito que vocês podem fazer história. Não só pela formação talentosa do grupo, mas pela fé que vocês têm. 
 Vocês fazem um teatro que não é clássico, graças a você Leo. Que não é experimental graças ao Duda. Que não é canastrão, graças a Mari que é quem puxa a interpretação. Que tem um fôlego e disciplina graças aos outros quatro. E que tem uma das atrizes mais carismáticas dos últimos anos. Quem já viu Bia em cena, e faz tempo que não vemos, pode falar isso.
 Por isso digo que esta é a sua chance Leo. Talvez você não seja um grande dramaturgo, mas é o dramaturgo da Trupe e você escreve para eles. Talvez o meu livro sobre vocês também de certo. É isso que veremos em poucos dias, por isso não percamos tempo.”
 Aquilo tudo que Matheus disse, me fez bem. Há anos eu não era ninguém e agora me sentia igual quando comecei teatro. No meu primeiro trabalho.
 O Bar Balcão fechou e fomos nós dois para o Filial. Saímos do chope e entramos na cachaça. Matheus me contou do musico que ele estava saindo e eu acabei contando sobre Bia. O agora jornalista ria.
 “Você sabe Leo que eu monitoro vocês todos. Já faz muitos anos.”
 Claro que eu sabia. A da obsessão dele por Tiradentes, pela Trupe de Azul, por Bia... O que eu não sabia é que ele, Matheus, talvez soubesse mais de mim do eu mesmo.
 “Não é porque ela é Bissexual, que ela não possa te amar.”
 Depois disso pedi que ele me explicasse do que se tratava aquilo. Claro que ele se referia a Mari. E se ele tivesse razão? Na porta da casa de Matheus, ele ainda disse:
 “Bia é a mulher ideal, Mari é a que você ama de verdade.”
 Aquilo tudo me atordoava. Primeiro porque Mari para mim não era uma mulher, era, mas também não era. Como Fred era Frederica. E bem possivelmente, por ela, Mari, não ser uma mulher dita “comum” fosse o motivo de eu me interessar. Ou por amá-la.
 Acordei de manhã e segui para a piscina do clube. Prometi para mim mesmo.
 “Hoje nada de pensar nem em mulher e nem em teatro.”
 Foi a aí a minha triste constatação: Eu não sei pensar em outra coisa. Drama ou comédia? 
 Nem uma coisa nem outra. Feijoada e Fernando Pessoa. E o sol brilhava naquele sábado na cidade de São Paulo. 
 Abri o jornal passei os olhos e vi a parte de teatro. Me deu uma saudade deles. Delas. E se eu fosse assistir a uma dança? 
 Acabei indo ver Tchekcov, nem drama e nem comédia. 



 Papagaio de pirata.


 Bia ficou de me pegar no aeroporto. Mas quando cheguei ao Santos Dumont, nada dela. Meu celular toca.
 “Você não me reconhece mais?”
 Olhei para frente e vi a uns dez metros uma mulher incrivelmente linda. Cabelos, pele, peitos, num vestido verde e por um segundo pensei: “Conheço essa atriz”.
  Era ela Bia. “Temos um vernissage para ir.”
 E fomos eu e ela. Chegando à galeria, várias pessoas vinham fotografar e falar com ela. Eu tentava participar, mas parecia que o que eu falava não tinha importância. As pessoas se concentravam nela.
 Uma luz se ascendeu forte e uma repórter de TV veio entrevistá-la. Eu tentei sair de perto, mas ouvi a repórter dizer: “Pode ficar aqui junto.”
 Saindo da galeria, ela disse que tínhamos ainda um outro evento para ir. Era a comemoração de um espetáculo de globais num restaurante. O espetáculo estava novamente estreando no Rio.
 Eu não sabia a que horas eu deveria sair do lado dela, ou se deveria ficar com ela para as fotos. Até que uma hora depois.
 “Leo, nós precisamos conversar.”
 Sim eu concordei. Vamos ter um filho. Será que vamos casar? Eram várias dúvidas e soluções que precisávamos tomar, juntos.
 Neste dia percebi que existiam três mundos na minha vida, e foi o que eu disse a Bia.
 “Um mundo da criação, aonde tudo flutua. Eu escrevo, eu atuo. Durmo feliz, tudo fica mais bonito, o mar, as árvores, a cidade. Mas tem o mundo das contas, do dinheiro, tudo fica um horror, os dias são iguais, tudo é barulhento e insuportável. E hoje descubro este terceiro, que é o seu. Todos são prestativos, tudo é fácil, comemos de graça, em lugares bonitos, o seu carro é confortável, seu cabelo macio, e é como se eu fosse à esposa. Entende?”
 “E isso te incomoda? De eu ganhar dinheiro e você não? De eu ser bem tratada, idolatrada, ser uma pessoa pública?”
 Como eu responderia a isso? A palavra é famoso. Leo você gostaria de ser famoso? Claro que sim.
 “Eu te admiro Bia. E quero que o meu filho nasça parecido com você.”
 “Leo eu confesso que durante um tempo eu amei esta vida. Esse reconhecimento, esse conforto. Mas eu estou com medo. Porque este tempo já durou muito. Outras meninas virão. E eu há muito não subo num palco. Isto me apavora. Porque agora vai ser diferente. Não é como antigamente. Agora todos vão estar lá vendo cada deslize meu. E fora tudo isso eu estou grávida de um homem que nem sei se gosta de mim. Que nem sei se ele sabe o que ele quer da vida. Seja em relacionamento amoroso, ou da vida profissional.”
  O que mais eu poderia querer? A verdade é que Bia era alguém de sucesso. E eu? Será que ela me admirava? Será que toda essa coisa de voltar a fazer teatro, não era só uma folga daquele terceiro mundo? Ela pegou na minha mão, estávamos agora num bar, no Baixo Leblon.
 “Leo, ou você se resolve com a Mari, ou você se resolve com a Mari. Morar nós três juntos não vai dar.”
 “Do que é que você está falando? Eu e a Mari? Ficou louca?”
 “Resolva. Boa noite.”  
 E me deixou ali sozinho. Vai ver todo aquele mise en scene de evento e vernissage, era só para me mostrar o quanto ela era poderosa. E era mesmo.  
 No dia seguinte quando cheguei no ensaio estavam todos exaltados. Napoleão se aproximou de mim e disse: 
 “Faça a mala estamos indo para Tiradentes.”
 Rodolfo discutia com Dario o produtor que havia vindo de São Paulo. Falavam sobre o patrocínio do Banco Brasilense. Um patrocínio milionário.
 “Mas a produção do Teatro ao Lado já sabe do patrocínio?” Perguntou Bia ingenuamente.
 “E o que é que eles têm com isso?”
 “São nossos parceiros”.
 “Nós não vamos mais estrear no Teatro ao Lado.” Falou Rodolfo.
 “Não?” Eu perguntei no que Napoleão que parecia a par de tudo disse:
 “Não.”
 “Nós vamos estrear em São Paulo.” Desta vez foi Rodolfo. “No teatro do Banco Brasiliense.”
 Todos ficaram perplexos com a notícia.
 “Mas são oitocentos lugares!” Exclamou Duda.
 “Tanto melhor, se divertiu Rodolfo.”
 Eu adorei a novidade, afinal a Trupe era de São Paulo, nada mais natural.
 Rodolfo havia brigado com a administração do Teatro ao Lado. Coincidentemente abriu uma janela no Teatro do Banco Brasiliense em São Paulo. Eles se entusiasmaram muito com o nome de Bia no elenco. E resolveram não só patrocinar, como ainda colocar a produção do teatro e a assessoria de imprensa a nossa total disposição. Ale, nossa cenógrafa, embarcaria naquela noite mesmo para São Paulo.
 Tudo estava sendo resolvido com uma rapidez tremenda, só um detalhe nos deixou ansiosos, não digo preocupados, mas ansiosos.  
 A data deles em São Paulo é um mês antes do nosso cronograma aqui do Rio.
 “Meu Deus!” Exclamou Duda.
 “Nós conseguimos! Ou melhor, conseguiremos!” Fui rápido.
 Só sei que dois dias depois estávamos numa van, nós sete integrantes da Trupe, somados ao jornalista Matheus, que gravava tudo com uma câmera a caminho de Tiradentes, Minas Gerais. Numa manhã de céu aberto. 
 Estávamos a dez dias do dia D.  



As Minas Gerais



 Na estrada vendo as árvores e todo aquele verde comecei pensar sobre a peça, não só a montagem, mas meu texto também. Qual foi a primeira vez em que eu ouvi falar em São Francisco de Assis?
 Não leitor, não se trata de um texto religioso ou mala, eu parti de São Francisco para falar de amor, amizade e principalmente política. Francisco de Assis tinha um jeito especial de fazer política. Era um subversivo pacifista, vegetariano, incentivador da sexualidade, do respeito à ecologia... Enfim ninguém é tão atual. Poderia ser Tiradentes, mas era Francisco de Assis. Será que teríamos tempo de visitar as cachoeiras de Carrancas? Cidade próxima a Tiradentes e um parque, reserva florestal com dezenas de cachoeiras.
 Na estrada Duda começou a ficar insuportável proibiu todos de fumar, o que eu achei ótimo. Acontece que ele também proibiu carboidratos, bebidas e qualquer outra droga até a estréia. A não ser o "chá" que tomaríamos em Tiradentes. O que me deixou puto, porque estávamos em Minas e eu queria comer e beber todas aquelas coisas que sobem o colesterol, mas que por outro lado me fazem tão feliz.
 Bem da verdade, ninguém estava mais aturando ninguém. Natural, já tínhamos matado as saudades e convivência em excesso é difícil. Uma hora as desavenças começam.
 E Duda é louco, não esqueçamos disso. Ele começou colocar uma disciplina tal, que até os soldados do Bope se submetidos a ela, iriam pedir para sair.   
 Na recepção do hotel, Bia foi imprevisível. Puxou Mari e disse que as meninas ficariam no mesmo quarto. Às vezes eu sou mesmo um cretino:
 “Quem tem mais de trinta anos não é menina, vamos combinar?”
 “Agora ele está assim Mari. Anteontem fomos a um vernissage e ele ao invés de me elogiar... O meu vestido verde e tal... Disse-me que verde só cai bem na natureza”.
 “Você falou isso para ela Leo? Seu babaca.”
 As duas me olharam como se eu não fosse também um ser sensível às palavras delas. Porque elas podem dizer o que querem e eu não? Também custava  ter sido menos orgulhoso e dizer para a Bia que ela era linda? Mas também para que? O Brasil inteiro já dizia isso para ela.
 A piscina do hotel boutique era sensacional e foi para lá que eu fui. Eu não ia ficar no quarto com o Rodolfo. Conversar o que com ele? Era um dia off, também horas na estrada.
 Foi só o sol se por, que eu e Napoleão fomos beber cachaça. Fugidos claro. Depois já bêbados encontramos todos num excelente restaurante estrelado da cidade turística. Não sei o que eu falei, também não era o único inconveniente da noite. Mas a porrada do Rodolfo me pegou em cheio. Tudo ficou preto e eu fui direto para o chão.
 “Você não vai falar assim com a Bia na minha frente! Ela foi minha mulher durante oito anos seu cretino!”
 Leo quando você vai achar o meio termo, ou você é o cara mais doce do mundo ou você é o cara mais amargo da terra. Acabei no quarto do Napoleão. Frederica mudou-se para o quarto de Rodolfo. E todo mundo se xingou e acabaram todos bebendo e Matheus gravando tudo no vídeo.
 De manhã no café, eu estava sozinho na mesa e Mari chegou. Ficamos quietos por algum tempo, ela riu.
 “Caiu ontem igual dragão de papel, me mata de vergonha.”
 “Mari, o Rodolfo é bem grande já reparou?” Continuamos comendo os pães de queijo sempre, olhando para ver se o Duda não aparecia. No fundo tínhamos medo é do Duda.
 “Sei...” Depois de um silencio, ela falou ainda:
 “Ela me disse que você gosta de mim. Você falou que me ama para a Bia?”
 “Eu não amo nem ela e nem você.” E concluí por último. “E nem mulher nenhuma.”
 “Nem aquela cantora que te largou por um músico?”
 “A cantora não me largou, quer dizer ela foi morar com o músico dela. Acontece que eu achei ótimo. E você Mariana há quanto tempo está abandonada sabe-se lá por quem?”
 “Talvez eu tenha um amante secreto. Alguém conhecido, uma pessoa pública que não possa se assumir.”  
 “Pessoa pública, tipo uma cenógrafa carioca?”  
 “A Ale é arquiteta. Rolou uma noite e só.”
 Nós dois rimos.
 “Vai dizer que você não comia Leo?”
 “Mari eu já transei com tanta gente nesta vida...”
 “Comigo eu não lembro. Transamos?”
 “Tudo tem uma primeira vez. Mas eu não transo com meus amigos.”
 “E com as amigas?”
 Aquilo estava ficando tão aborrecido. O problema não era a falta de vontade nem de transar com Mari e nem com Bia. O problema é que eu não sabia qual de verdade eu queria. Eu queria as duas, e percebia que elas queriam que eu desejasse só uma. E quanto mais eu demorasse, mais elas iam deixando de gostar de mim.
 Definitivamente elas não me entendiam. E eu para me salvar me agarrava numa máscara machista, cruel e monótona.
 Antes de eu me desentender de vez com Mari e isso seria a sim a primeira vez, nós nunca tínhamos brigado, Duda apareceu e começou a nos xingar e dizer que deveríamos comer frutas e queijo branco. Um hóspede um homem de uns cinqüenta anos e jeitão de turista americano, ainda brincou e disse que ali não era SPA e nem eu, nem Mari éramos gordos. Duda disse:
 “Eles não, mas o senhor é e bem gordo”. Depois ainda jogou suco no hóspede.
 “Nos meus atores mando eu!”
  Realmente estávamos todos a flor da pele. Seguimos para "cerimônia".
 Em frente à fonte e logo mais adiante o Teatro barroco. Nós nos olhávamos. Dez anos depois e estávamos de volta. Faríamos um ensaio para uma platéia de franceses do século dezoito que só nós poderíamos enxergar.
 Rodolfo veio me abraçar e pedir perdão. Com aquele gesto todos suspiraram e demos as mãos. Foi bonito da parte dele. Uniu a Trupe. 
 O administrador do teatro veio e disse que estava tudo a nossa disposição.
 “O teatro está pronto.”
 Frase que eu não entendi, porque naquele instante eu só entendia francês.
 Mágica? Veremos.   


Final


Às vezes eu comparo um grupo de teatro a uma banda de música pop. Temos nossas brigas, nossos rituais, nosso estilo. Só não temos o mesmo número de fãs. Já tentei fazer drama. Mas o que move minha pele e alma é a comédia.
 Sempre foi e sempre me esqueço.
 Depois de tomar nossa bebida secreta subimos no palco.
 “Vamos passar vários corridos até não podermos mais.” Duda nos orientou.
 Nas primeiras três passagens eu ainda estava mecânico, cérebro, razão. Já na quarta vi os primeiros franceses na platéia, minutos depois a casa estava cheia. Delírio absoluto. Nesta alucinação lembrei do teatro Romano porque é dela que vem a minha estrutura. Plauto.
 Napoleão estava excelente, Mari, um furacão em cena e nós outros nos agüentávamos. Foram dez horas de ensaio e delírios. Trabalhamos com a exaustão. Quem disse que teatro é fácil?
 No dia seguinte, deixamos Tiradentes em direção a São Paulo. Éramos notícia, uma notinha no jornal contava sobre a minha briga com Rodolfo. Paramos em Carrancas e passamos o dia na cachoeira. Acho que é perda de tempo contar o quanto o corpo de Mari é lindo num biquíni. Sorte de quem fosse seu amante. Sua amante provavelmente.
 De volta a São Paulo. Vejo uma vizinha na Rua. Uma menina do clube que há anos eu conheço, mas que agora estava uma mulher de 23 anos como depois eu vim saber. Eu voltava da padaria e ela passava carregando um skate.   
 “E o teatro? Como anda?” Ela arriscou.
 Partimos para um café e depois para a minha casa. Foi tudo rápido. Eu estava mesmo precisando de outra mulher. E uma bem diferente tanto de Bia como de Mari.
  Diferente como? Veterinária, menina... E novidade na minha vida amorosa. Eu já tinha colocado os olhos nela há muito tempo, e agora ela estava na minha cama. Uma molequinha.
 “Vamos ao cinema?” E fomos.
 Ligia era o que chamamos hoje em dia de underground. Amava a baixa Augusta. Acabamos na Loka.
 Dia seguinte ressaca e ensaio no Teatro do Banco Brasiliense. O lugar era ainda maior do eu imaginava e com mais funcionário também. Eu tinha um camarim só para mim. Pessoas a minha disposição e 1.200 lugares na platéia e não 800.
 A semana passou voando, ensaios e entrevistas na televisão e rádios. O cenário da Ale realmente havia ficado esplendido.
 Quarenta e oito horas antes da estréia. Bia e eu mal nos falávamos. Resolvi atender Lídia a skatista e fui ao encontro dela de madrugada, depois do ensaio.
 Acho que eu estava neste dia apaixonado. Lá pelas cinco da madrugada Duda me liga.
 “O que foi?” Pergunto temeroso.
 “Nada.” Ele diz. Pela primeira vez estava tudo sob controle. A produção eficiente, os ensaios em dia e o espetáculo pronto.
 Nossa primeira estréia fora num teatro para cinqüenta pessoas. No dia colocamos 60, muitos no chão e fomos comemorar no bar Empanadas na Vila Madalena. Só nós, e mais um ou outro agregado, namorado ou namorada de alguém. Uma mesa com cerveja de garrafa grande, foi isso.
 Cheguei ao Teatro do Banco Brasiliense quatro horas antes. Quase todos já estavam lá. Mil e duzentos lugares! Que medo.
 O terceiro sinal foi dado e as cortinas se abriram. Fiquei aliviado quando vieram as primeiras risadas. Nós loucos não havíamos feito ensaio aberto. Duda acha que dá na mesma chamar de estréia ou ensaio aberto.
 Todos estavam no seu melhor desempenho da carreira. E ao final eu vi o teatro todo nos aplaudir.
 Éramos a Trupe do Sol. Um grupo de comédia, de teatro. Ao final Bia pediu silencio e falou.
 “Hoje eu quero agradecer a seis pessoas muito especiais para mim.”
 No que nos olhamos, demos pela falta de Mari.
 Dario veio dos bastidores e pedindo para os seguranças abrirem caminho. Ele e outros técnicos carregavam Mari pelo corredor do teatro.
 Neste dia não houve festa. Estava programada uma enorme festa. Cancelemos e seguimos para o hospital.
 Mariana morreu naquela madrugada. Agüentou o mais que pode, e escondido da gente, já havia treinado uma substituta. Não queria nos prejudicar.
 Fizemos o segundo dia de espetáculo com a nova atriz em seu lugar. Veio o enterro, a missa de sétimo dia e os três meses de temporadas.
 Eu continuei vendo Ligia, a garota de 23. Rodolfo e Bia ao final da temporada voltaram para o Rio.
 Duas semanas depois saiu o resultado do prêmio Shell de um ano antes. O ano de 2009. Mari havia ganhado o prêmio.
 Comecei a receber vários pedidos de textos meus com a condição de que Bia estivesse no elenco. Eu fui ao Rio ver o nascimento do meu filho, claro. Mas depois voltei para São Paulo.
 Um grupo de jovens atores me convidou para dirigi-los. Ao mesmo tempo em que Dudame dirigiu com Napoleão e outros numa comédia de Georges Feydeau.
 A vida foi passando. Eu sempre me lembrava do dia que Bia me pegara no Santos Dumont e estava tão linda. Por que eu não disse isso pra ela?
 A Ligia acabou me largando, também eu estava cada vez mais depressivo.
 Minha campainha toca. Abro a porta e é Ale a cenógrafa. Ela tinha uma carta para mim. Explicou-me que Mari lhe pedira que me entregasse:
 “Leo mentimos pra você.”
 “Como assim?”
 “Eu e Mari já namorávamos há dois anos. Rodolfo nunca teve nada com meu irmão, simplesmente porque eu não tenho irmão. Inclusive Rodolfo é Heterossexual.”
 “Do que é que você está falando?”
 “Ela até me pediu permissão pra transar com você para você perceber... Que não havia nada a ser feito. Ela fora apaixonada por Beatriz sim. Disse-me que no início tinha grandes ambições e só aceitou entrar no grupo porque fora chamada por Beatriz. Depois mais velha ela percebeu que você talvez tivesse sido o mais talentoso do grupo e não ela. Enfim... Mari queria fazer um texto seu sim, mas também queria que você e Bia se entendessem. Ela falava às vezes com Rodolfo e Frederica, logo sabia que Bia e Rodolfo não estavam mais juntos. Todos nós fizemos um pacto para tentar unir vocês de novo. Seu filho é um esforço quase que de toda a Trupe. O tonto do Matheus quase colocou tudo a perder. Esta carta aqui prova isso. Ela disse que se vocês continuassem juntos eu não deveria dar-lhe a carta. Mas como vocês não estão. Tome”.
 A carta de Mari dizia:
 “Leo, a fé da Trupe é o seu amor por Bia.”
 Depois páginas e páginas relembrando nossa trajetória e tentando me convencer do meu amor por Bia.
 Abracei Ale, chorei dois dias e a vida voltou ao normal. Recebera um outro convite para voltar a fazer palhaço, na verdade um show de Clown.
 Um dia ligo para um amigo ator: “Vamos beber uma cerveja?”
 “Leo, eu estou indo numa festa, quer ir?”
 Fomos. Era na casa de uma conhecida dramaturga e seu marido diretor. Umas duzentas pessoas. No alto da Lapa. No jardim rindo alto e de vestido verde vi uma figura linda, com pessoas em volta. Quando ela virou o rosto eu reconheci a mãe do meu filho.
 Ela veio falar comigo:
 “Você engordou.”
 “Você está linda.”
 “Onde está a menina veterinária?”
 “Você sabia dela?”
 Bia deu de ombros. “Claro que sabia.”
 “Não estamos nos vendo mais. E você? Como está o Francisco?”
 “Parou de mamar finalmente. Não se preocupe ele está com uma babá e a minha mãe.”
 “E ele está bem? Digo... Eu morro de saudades. Posso velo amanhã”.
 “Leo agora você vai poder velo quando quiser. Eu mudei para São Paulo!”
 “E nem me falou?"
 " Estou dizendo agora.”
 Continuamos ali, bebendo cerveja, falando de teatro. De cinema, de comida e até política. Entre as árvores.
 “Leo, se eu nunca te disse isso, lá vai... Você é o melhor amigo que eu tive.”
 “Tive ou tem?”
 “Fazemos assim, amanhã vá à casa da minha mãe nos ver. Almoçar, combinado?”
 “Combinado.”
 Já ia indo embora e ela me parou:
 “Aquela nossa cenógrafa a Ale...”
 Eu sorri. “Que é que tem?”
 “Ela também te deu alguma carta por estes dias?”
 Ao invés de responder, eu me aproximei de Bia, olhei nos olhos dela. Nossa como ela é linda! E nos beijamos.

Fecham-se as cortinas.

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