Herói
Era a primeira vez que esse trapezista viajava de avião. Não havia tempo. Sua namorada estava morrendo no hospital em São Paulo e ele fora passar o natal em Londrina. Sentiu certo começo de pânico misturado com prazer quando a aeronave acelerou na pista para a decolagem. Depois olhou no bolso do assento à sua frente e achou graça no nome da revista. Era o mesmo que o seu. “Pois então não sabem que este nome é ruim para voar e bom para sonhar e acidentar-se”.
Já lá em cima, no silêncio, lembrou-se de Gabriela. Como ela estava? Há alguns meses viviam juntos, dormindo todos os dias na mesma cama. E a paixão continuava a mesma. Pelo menos para ele. De repente o céu se abriu e veio o sol. Essa seria uma manhã quente. Tão quente quanto aquela em que Gabriela e Carla foram visitar a sua antiga pensão. Uma espécie de república estudantil de jovens provenientes da província.
Uma vila de casas que se localiza na fronteira de Pinheiros e Vila Madalena.
Gabriela achou as paredes e o chão um tanto abandonados em umas partes onde se encontravam buracos, às vezes preenchidos por uma massa sem pintura que já pulavam para fora como fruta madura. Apesar disso gostou da liberdade e do colorido criativo que os estudantes iam decorando o espaço.
Era uma comuna e todos na verdade, uns vinte moradores e mais alguns agregados em um terreno com três pequenas casas pareciam tão diferentes, nenhum foi arisco, aliás todos que passavam se cumprimentavam com um “oi” e falavam de suas vidas como em um documentário. Será que eles tratavam bem de Ícaro lá? Foi o que Gabi pensou.
— Você sente falta da sua família? Da sua mãe?
— Lógico!
Ele respondeu, depois mostrou sua cama e a menina se assustou quando viu o banheiro e pensou: “Tadinho, com esse chuveirinho elétrico e esse espelhinho que embaça, parece uma maloquinha”.
Do resto adorou e prometeu a si mesma de trabalhar no restaurante onde começara e com isso ganhar independência e morar por sua conta, como Ícaro.
A aeromoça serviu-lhe um suco de laranja.
Meu Deus, como ela estaria? Mas no final tudo daria certo. E não fora tão grave, lhe disseram por telefone. Passariam o natal junto.
Mas ele não entendeu bem: foi um assalto? Uma tentativa de estupro? O que houve com Gabi? Será que ela está bem? Ela precisa de mim.
E o sono veio. Só que ele não podia dormir.
As duas amigas sentaram-se na cama de Ícaro e ele deitou em uma rede que estava do outro lado da janela. “Por que será que Carla está de tão mau humor?” — ele se indagou.
— Tem um filme aí, vocês querem ver?
— Acende um, depois a gente assiste. — respondeu Gabi.
Então os três foram para uma salinha com um sofazinho, que na verdade era mais uma cama improvisada do que um sofá propriamente dito e um pufe. Dois moradores vieram se juntar ao grupo. Shakespeare in love era o nome da fita.
— Esse filme é irado. Já assisti, mas vou adorar ver de novo. — disse a Chavez, e depois se encostou a Ícaro que estava entre ela e Carla.
— Pode colocar a cabeça no meu ombro, Gabi.
Logo que o filme terminou abriram à porta da cozinha e dois estudantes prepararam um cheiroso macarrão com salsichas, e eles, ao verem Gabi não tiveram dúvida em insistir num convite para que todos jantassem juntos naquele começo de noite. A larica era forte e aceitaram.
Era o começo do começo do início do namoro do trapezista e a garota, mas por um descuido de amizade Ícaro beijou a boca das duas amigas muitas vezes, com o que Gabi parecia não se importar.
Carla não estava muito sorridente, mas sorriu na hora das duas irem embora e disse baixinho no ouvido de Ícaro:
— Você acha que vai ter essa princesinha, mas ela ama outro.
— O que é que você está falando aí, Carla?
— Nada não, Gabizinha.
— Se fica doidona... Ah! Me abraça amiga e promete que nunca vai me roubar namorado.
— E como? Mesmo que eu quisesse amiga, todos os homens do mundo são loucos por você. Até os feinhos! Olha aí esse aí.
Carla se referia a Ícaro que achava muita graça em tudo. Mas agora a ficha caíra. Carla realmente devia ser apaixonada por ele como ela mesma em segredo já lhe insinuara.
Teria Carla alguma coisa a ver com o acidente de Gabriela? Era o que Ícaro se indagava enquanto a aeronave se preparava para pousar em São Paulo.
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